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quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Momentos


Há momentos que são sublimes e que nos ficam lacrados na mente como um ditongo. Matizes de cores, o toque subtil de uma cumplicidade pressentida, um quase silêncio que nos envolve (apenas o suave murmúrio das ondas acariciando as pedras ao redor do ilhéu), a luz íntima que se adivinha na retina dos olhos. Momentos, tempo e história. E pedras. E poesia. Que quase se abraçam com ternura na comunhão de luz&poema.


Como este momento captado no ilhéu de Santa Maria, num domingo qualquer de Outubro...


(Foto de Paulino Dias)

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Da escola de "páia" de Marrador à UNI-CV

Quando Albertino fez ecoar sua voz de trovão nas pedras do largo do Café Sofia, entoando para dentro da minha alma o “Oi, Cabo Verde, bô qu’ê nhá dor más sublime…”, não foi o edifício recém remodelado da Reitoria que eu vi por detrás do palco. Nem tampouco a bandeira do país tremeluzindo à brisa suave desta tarde de Novembro, como que acenando às ruas do Plateau carcomidas de tempo e aos presentes enfatiados até aos gorgomilos, sua e nossa história de tantos séculos.

O que eu vi ali foram os olhos grilidos de um miúdo que conheci há alguns dias nos cutelos de Rui Vaz. Olhos abertos de mundo, olhos sedentos de mundo, olhos perscrutando o chão crã do mundo que nos cerca. Os olhos. Ah! Essa minha eterna mania de olhos! Como os olhos de um outro miúdo de palmo e meio – eu! – pisando meio a medo o primeiro dia do saber, na escola de palha de Marrador.

Já se passaram vinte e tantos anos. Da escola de palha de Marrador ao quase-grito de euforia da minha querida ex-professora, hoje feita Ministra de Educação, arremessando-nos ouvido adentro ali na Praça da Escola Grande “temos universidade!”. Temos universidade, sim senhor!, temos sonho feito realidade, temos profecia que nos abraça com ternura, temos utopia que se constrói na voz morna do Albertino, “... nhá vida naci, di disafio di bu clima ingrato...”. E temos memória. Mamãe costurando o rasgo da minha bolsa de fazenda onde acomodava o caderno de vinte escudos, a borracha pequena, o lápis e a caneta bic comprada ali na loja de Ti Bia d’Nivinha em Povoação, mais a batata assada pá matá injum no intervalo das dez horas, antes que viessem as refeições quentes de camoca-com-leite, arroz-com-corned-beef ou canja com galinha. E a professora Dona Bibia abrindo-nos outros mundos – bem maiores que as estórias de bruxa, futcêra, Ti Lobo e Xibim – no abecedário que estendíamos à nossa frente no tampo da carteira.

Temos universidade. E vi ali, na emoção desta frase feito poema em meus ouvidos, também os olhos de Nhô Domingos de Júlia d’Ana, levando-nos de mansinho ao cair da tarde para saciar nossa sede de mundo nas estórias de naufrágios nos mares de Biscaia e de amores de marinheiro em cada porto por esse mundo fora, os prédios nas cidades grandes que quase chegavam ao céu ante nosso espanto de meninos da ilha, e os navios que se alongavam de uma ponta a outra do mar...

Temos universidade. Temos outros destinos para outros meninos nos cutelos de Rui Vaz a Fajã Domingas Bentas. Temos história e estórias que agora me chegam enquanto o sono não vêm...
(Foto de Paulino Dias - rapazinho de Rui Vaz, Santiago)

Rostos de tambor II


Adormece o moço da ilha, sobre as esporas do tambor nesta manhã cálida de Junho e de Santo António na ribeira de Paúl. Beija-lhe o ritmo e a música, acaricia-lhe ao de leve a pele de cabra mais a adriça, fecha os olhos e transporta-se de mansinho quiçá aos braços da crioula distante, ao colá tambor que nos enleva e nos subjuga as coxas e os nervos de macho da ilha, à tal herança das tabankas d’África que nos legou a avó escrava.

Adormece o moço. E ama, sim senhor! Apaixona-se pela cadência do poema que dali se escapa em harmonia da pele esticada do tambor. Adormece e sonha, o moço da ilha. Que importa se amanhã a chuva não vem, se a terra perfila-se – ressequida e só – sob a sola dos pés em movimento, se o apito emudeceu diazá nas ribeiras da ilha!
Ama, certamente, o moço da ilha, caramba...


(Foto de Paulino Dias - tocador de tambor, festas de Santo António/2006)

sábado, 18 de novembro de 2006

Poemas com sabor a sexo II


Hoje deu-me para remexer no baú, caramba! Talvez inspirado que fiquei, com esta idéia de ver o mundo ao avesso. E dei de caras com uns versinhos rebuscados que fiz outrora...



1

E foste poema
e lua cheia
na ponta dos meus dedos sobre teu corpo
Foste clitóris
em alvoroço
no outro lado da minha língua erecta
o grito estrangulado
o ranger do tempo nos meus nervos
o tal mastro navegando
no teu mar uterino de Sodoma e Gomorra
o gemido que nos foge
e o silêncio depois...


2

Há uma lua cheia
sobre meu crânio e a memória
há teu gemido em meu tímpano de macho
há um orgasmo
o grito alucinado
e o silêncio – outra vez! –
no chão crã de Cidade Velha...


3

Poeta.
E musa.
E deusa
E fenda.
E mil vaginas
E gemido.
E flôr. Sem pudor.
E casta. Cândida.
Ânsia de tuas mãos
na minha pele.
O perfume.
O cigarro
(desconfortável).
A noite
putamente cúmplice.
A manhã
na memória.
A mánha
e a estória.
Feita poema em teus lábios.
A ânsia.
A cama sem sono.


4

Dobro a luz
em gemidos de fêmea,
desfaço a noite em sêmen
e a tal fenda flor deusa e puta
desfaço-me
insônia e
silêncio e
mãos de poeta
nas minhas – também! – mil epidermes,
desfaço-me em ti
na palma da minha mão direita
enlouquecida em orgasmos...



(Foto de Paulino Dias - Lua cheia sobre Fajã)

Rostos de tambor I


Há rostos que nos marcam por dias a fio e acariciam-nos ao de leve a memória como os versos de um poema. Há rostos que nos ficam, olhares que guardamos quase com ternura, sons que nos embalam a monotonia dos dias e das noites em sequência, rumores da terra em movimento. Rostos de ilha, rostos de tambor, nervos que explodem na pele de cabra sua secular herança d´África, veias retesadas na curvatura do pescoço e da emoção que nos envolve.

Rostos de Nhô Luciano mais aquele outro patrício em diálogo de tambor & adrissa nas festas de Santo António no Paúl, o apito cadenciando o tam-tam-ca-tam-tam em rebuliço nesta minha alma também de ilha por detrás da objectiva...


(Foto de Paulino Dias)

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Sonho de menino


Queria voar. Ao menos uma vez na vida, caraças!, queria ter asas e poder voar. Voar sobre o azul do oceano que nos cerca, como estoutro puto em Pedra Badejo no tal domingo de manhã, voar sobre os vales e cutelos da minha infância, voar sobre as achadas e a alma destas ilhas, de Rabo Curto à secular monotonia de Fajã d´Água, de Carriçal ao odor de maresia de Ribeira da Barca, voar sobre meu próprio crânio e minhas memórias em rodopios loucos, roçar suavemente a ponta dos dedos pelos cumes da última montanha, libertar-me dos pés que me prendem a este chão com gosto de secura...
(Foto de Paulino Dias)

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Um miúdo de coragem!


Às vezes dá-me ganas de virar o mundo - ao menos o meu, caramba! - de pernas pró ar, só para lhe rever os contornos. Ou só de gozação mesmo, para que me estrebuche às gargalhadas como um moço doido. Virar a televisão à parede para que possa deliciar-me com a não-imagem no dorso preto, apagar um a um os versinhos de merda para ter de volta a brancura da folha A4 sobre a escrivaninha, retomar o tempo nas minhas próprias mãos... Quem sabe assim, às avessas ou de cabeça-abaixo, as coisas não me pareçam mais claras, quem sabe!

Já dizia Nhô Lela Cracunda que o Altíssimo às vezes escreve direito por linhas tortas... Que poema então, meu Deus, estará este miúdo a soletrar ali no portinho de Pedra Badejo nesta manhã de domingo? É com certeza um poeta, este miúdo. Caraças!, porque só um poeta tem colhões suficientes para ver o mundo de cabeça-abaixo!
(Foto de Paulino Dias)

Numa curva da estrada de Catano (Rª das Patas)



A mocinha tímida que me esconde o rosto e o olhar para que não lhe roube os traços a lente da objectiva. O miúdo, o 33 fashion que lhe recobre o peito de menino, e quiçá o sonho. Os braços retesados como que segurando o mundo, mas – chiça! – não é o mundo o olhar teimoso do burro que se contorce sob o peso da construção. A rocha empertigada no fundo do retrato como que a perfilar-se - também ela! - perante meu olhar de eterno espanto. A curva da estrada. A rocha. O menino. A timidez. A força. Ilha. Ilha na ponta dos meus dedos e na retina dos meus olhos. Ilha em mim que agora me afaga a memória enquanto escrevo...
(Foto de Paulino Dias)

Poemas com sabor a sexo I


Às vezes, quando de mim se abeira o tédio (ia dizer a loucura do Vadinho...), também fingo-me de poeta e saio por aí aos versos. Pobre moço!


Um dos cinco poemas com sabor a sexo

E hoje
a espera.
O tempo voa
para lá do crepúsculo de ontem
e da ante-volúpia nos teus meus olhos
Medusa poema som de violão luz & grito
musa noite lençol amarrotado fome de corpo
e fome na ponta dos dedos a pele inteira se contorce
Há rios de suor há gemidos feito amor de macho há dor
há lua cheia nos cabelos impudicamente fartos da fortaleza
há mãos e dedos e nervos de orgasmo cravados no parachoque (e o grito cavo na garganta da noite como se poema no teu corpo desnudo...).
(Foto de Paulino Dias)

Entre a liberdade e a solidão


Às vezes a solidão é algo que quase se pode apalpar. E confunde-se com a liberdade, como a desta árvore que nos observa do cume da selada de Alto Mira. Entre a solidão de pedra nos campos ressequidos e a liberdade subtil que nos acaricia a rosto, desde o centro da ilha ao azul do mar que nos espreita lá longe. Entre a sensação gostosa de sentir-se dono do mundo ao redor, e a frustração de saber – caraças! – que este tal mundo não é maior que o silêncio que nos rodeia. Sobretudo o silêncio.
Como o terrível silêncio que me envolvia quando ia catar comida-de-bicho logo de manhãzinha, entre fiapos de nuvens descendo suavemente pelos cumes da rocha de Pedregal e o castanho claro da páia-tinguinha cobrindo as encostas, a liberdade – e o medo, chiça! – batendo tum tum tum dentro do meu peito de menino. Desde então, não sei se tenho mais medo da solidão ou da liberdade...
(Foto de Paulino Dias)

terça-feira, 14 de novembro de 2006

A primeira besteira de um bloguezinho despretensioso...

Escrever. Há qualquer coisa que nos empurra, que nos guia os sentidos, que nos enleva ou que nos amortece a queda quando escrevemos. Há uma tal ânsia de liberdade, quase que sentimos o vento morno da tarde a roçar-nos a ponta dos cabelos crespos e os braços estendidos em cruz à beira do precipício. E suavemente vamos rebuscando os sentidos e a memória, o tempo na retina dos olhos, a frase que nos ficou lá longe, o momento triste/alegre/exultante e sei lá que mais, o poema rasgado na solidão de uma noite longínqua de mãos cravadas em raiva no travesseiro.

Escrever é quase que apalpar o silêncio que se forma ao nosso redor. É acariciar a memória com ternura e um quê de saudosismo, é envolver o tempo numa auréola de fingimento (já dizia o outro que o poeta é um fingidor...), é temperar a monotonia do ponteiro do relógio com o olhar da moça que nos atravessou pela frente ali ao dobrar a esquina, é tactear o sossego do cair da tarde em acordes dó-ré-mi de um violão que apenas pressentimos.

Quero a liberdade de escrever o tempo e a memória. Assim sem rumo nem caminhos traçados. Sem conómetros sobre meu crânio amputando-me a carícia de um verso inesperado, nem sinos batendo as doze badaladas na igreja desta minha outra freguesia. Vou apenas chamar uma a uma as estórias da minha infância longínqua, trazer até este meu outro mundinho as mãos rugosas dos velhos da minha aldeia, aprisionar na folha em branco os sons e odores que me enfeitam os dias em movimentos enquanto passo pela multidão...