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segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Crónicas de Fajã

Crónicas de Fajã 6

Volto a dar de caras com a manhã fria neste planalto de Fajã, quando abro a janela do quarto. Tenho as pernas doridas depois das cinco horas de caminhada de ontem, entre Xoxô e Corda, com os meus amigos americanos Jim e Deborah. Mas valeu a pena, caramba!, penso cá com os meus botões. A bacia de Xoxô que se abre como uma flôr após contornarmos a curva do Canto, o famoso erotismo pétreo de Lombo de Pico com a sua torre que mais parece um pénis erecto. Não faltam as bolas, as mangueiras no sopé parecendo pentelhos eriçados, as gentes ao redor nas suas casinhas de telha e palha tinguinha... A vista do vale de Ribeira da Torre a partir das ladeiras de Losnã tem o sabor de um poema que nos enleva assim de repente. Assim como a cerveja gelada e o sorriso da Milú que nos espera no bar do Sr. Domingos de Bia em Corda, enquanto aguardo o carro para Povoação...

Há dias fui igualmente até Pinhão, com o Maica de Nhá Joana, que vive em França. Subimos pelo caminho de Tope, passando por Selada de Ribeirinha de Jorge, com o precipício da Ribeira de Pedréne no nosso lado direito, descendo depois até a Vila de Povoação. Sempre com Fajã lá ao fundo acenando-nos em belíssimas vistas lá do alto. Como é belo estoutro lado da ilha, pessoal! Fica o convite, Célia. E Zé Pedro. E os outros - colegas de caminhada em Santiago...

Doem-me as pernas, entretanto, quando volta a minha mente ao quarto nesta manhã quase fria. Minha filha Patrícia dorme ainda. Paro por alguns instantes para lhe rever os contornos da face. Afasto-lhe uma mecha de cabelo dos olhos e sorrio inesperadamente...



Crónicas de Fajã 7

No dia 27, Nhô Jõn Miguel e Nhá Titina completaram sessenta anos de casados. Houve festa rija aqui no Planalto de Fajã, como não podia deixar de ser. Com missa do Padre Ima, choros de emoção dos filhos que vieram de propósito, discursos do Miguilim, o filho mais velho, música & danças, o abraço apertado em jeito de parabéns, o pedido discreto a Nhô Jõn para que me ensine o truque. Preciso.

No mesmo dia foi o 98º aniversário da Didita, lá em Chã de Margaridinha. Nesta noite não brigou com Nhá Ilda, como de costume. Sorria, sorria sempre, enquanto o neto Pulitcha lhe rodava num mazurca pelo terraço da casa do filho Corsino. Quase que não lhe sinto mais o corpo quando lhe abraço por entre as lembranças de diazá que me assaltam no preciso momento.

A 29 deste mês teve mais aniversário. Desta vez foi a minha mãe Silva quem fechou a conta dos 74 anos. Dançou com o meu velho ali no corredor (alguns dos filhos e netos ao redor a bater palmas...). Até roubou-lhe um beijo, assim de repente, entre a gargalhada da assistência. Antes do apagar das velas e da primeira fatia de bolo. Antes do contar de estórias ali no corredor defronte. Antes do verso que deixo logo depois no bloco de notas sobre a mesinha de cabeceira, enquanto o sono não vinha...


Crónicas de Fajã 8

Logo à noite será a festa, ali no terraço do Ntone Santos. Enfeitaram a casa toda com ramos de pinheiros e fitas multicolores para a festa do final de ano, e tascaram-lhe poeticamente o nome de “Astro do Amor”, numa placa improvisada pelo Ney de Treza. Vou até fingir arrogantemente que foi tudo preparado por tua causa. Para nós dois: a música, os apitos, as gargalhadas, os foguetes que certamente ecoarão pelo vale à meia noite em ponto, os brados de Boas Festas que ouviremos do Pina, da Bia Tchabéta, do Octávio de Trezinha, do Roberto, do André de Tunkninha, da Nonóia...

Será tudo por tua causa - vou pensar cá com os meus botões. Até o poema que me chegará sem aviso prévio, e que sussurarei devagar no teu ouvido enquanto dançamos com os olhos fechados aqui na noite de Fajã Domingas Bentas...

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Crónicas de Fajã 5

Foi delicioso o Natal. Como há muito não tinha vivido. Não recebi presentes embrulhados em papel multicolorido. Nem me lembrei que deveria haver peru recheado, ceia à meia-noite, musiquinhas de gingle bells gingle bells a passearem pelos altifalantes da rádio. Não teve sequer árvore de Natal com profusão de luzes e bonecos da Virgem Maria com o menino Jesus ao colo numa manjedoura. Mas foi delicioso o Natal aqui na ilha.

Havia sobretudo um sorrir genuino, uma vivacidade nos olhares, uma certa poesia no abraço apertado do meu velho Junzim d’Pólina à meia-noite em ponto, um reviver antigos momentos cúmplices no beijo que mamãe deixou-me na face entre um Deus te abençoa e um Virgem Maria ta companhób na bôs passada.

E havia inesperadamente o teu sorriso a meu lado. A lua cheia que endoidecia no contorno das rochas do vale. Teu corpo encostado ao meu em comunhão & pecado. Assim, desprogramadamente. “Tempér de nhá catchupa, corda de nhá violon” – sussurrei-te baixinho só para te ouvir a gargalhada. O passeio de manhã à frescura de Xoxô, a cerveja gelada ali da loja do Calú de Adelaide à uma da tarde. O banho depois no tanque de Marrador e o guizado de cabrito na casa de Nhá Maria d’Antóna. O caminhar logo à noite abraçado a ti a ouvir a gostosa sinfonia dos grilos na ourela da estrada do vale. O poema que te declamei como o tal moço doido, ali na curva de Ribeirinha de Jorge às 19h50mn – lembro-me agora que a lua já despontava novamente...

Não teve gingle bells nem ho ho ho’s do velhinho de barba branca no planalto de Fajã. Mas foi naturalmente delicioso o Natal aqui na ilha, caramba!



("Fajã Domingas Bentas" - foto de Paulino Dias)

domingo, 23 de dezembro de 2007

Cronicas de Fajã Domingas Bentas

Crónicas de Fajã 1

Eram precisamente 11h12mn quando cheguei ao planalto de Fajã, neste sábado 22/12/2007 . Lembro-me de ter olhado o relógio instintivamente (o maldito tempo a cronometrar-me a alma mais uma vez, porra!). Meu pai Junzim d’Polina aguarda-me ali no portão com um terno abraço que já me sabe a Natal na ilha, mamãe também vem chegando da cozinha e escancara os seus braços para que eu neles me aloje como o filho pródigo. O aperto dura largos segundos, enquanto me pergunta pela vida, a Praia como ficou, estás bem disposto graças a Deus, nhá codê!, já estávamos com saudades tuas. Papai ressurge outra vez vindo da sala de jantar com a garrafinha nas mãos e dois copos. Pa secá suor, diz-me... eh eh eh.
Minha princesinha Patrícia está comigo, naturalmente. Fui buscá-la antes de rumar para o vale, vai passar estes dias comigo. Linda. E meiga como sempre. Mas vai logo perguntando-me pelos presentes, depois do abraço apertado e do longo beijo que me sabe a poema nesta manhã de dezembro. Fala-me entusiasmada da escola, da última prova em que tirou mais um 20, do número seis que estiveram a aprender nas últimas aulas, das brincadeiras de roda no intervalo...
A vida é bela, parece dizer-me o Benigni aqui no planalto de Fajã Domingas Bentas, entre rumores de verde, o silêncio da ilha e o cheirinho bom de cachupa guizada que me chega lá da cozinha neste preciso instante em que vos escrevo.



Crónicas de Fajã 2

A tarde foi de festa no planalto. O tradicional encontro dos “menos jovens” da comunidade, no Natal organizado pela malta das associações Amafajã, João Paulo II e Pedras Vivas. Estavam quase todos lá: Nhá Júlia d’Antone, Nóna e Nhô Marta, Nhá Treza, Dinha Arcângela, Tia Tuda, Nhô Jõn d’Guigui, Nhô Lela e sua esposa Nhá Engrácia, lá de Ribeirinha Curta, Nhá Guida de Marcelino que veio de Varzinha com Nhá Lina de Vicente, Ti Pipi mais Nhá Carlota, Nhô Jon Ntunin e Nhô Zéc de Marrador, meus velhos Junzim d’Pólina e Silva, e tantos outros...
Primeiro foi a missa rezada pelo Padre Ima, que veio de Povoação propositadamente. O pátio da escola feito capela ao ar livre, a fé a sair das soturnas igrejas para galgar os vales, montes e cutelos até à casa das gentes da ilha. A fé estampada no rosto de Nhá Nizinha, o olhar fixo no altar improvisado de onde Padre Ima fala à plateia do amor de Cristo. Nhô Jôn M’guel e Nhá Titina recebem do Padre um presente pelos 60 anos de casados (esta uma próxima crónica...). Nhá Joana Carlota recebe igualmente um presente, por ser a mais idosa da comunidade, ostentando uns rijos quase cem anos.
Depois a música, os comes e bebes, a dança. Papai abraça a minha mãe numa morna enternecida. Os olhos estão fechados, deve estar a recordar os velhos tempos de conquista, nos bailes das salas de terra batida alumiados a candeeiros a petróleo. Depois é Maria Berrnalda quem lhe arranca os pés do chão num coladera arrebatado que lhe deixa exausto mas feliz da vida. Nhá Treza de M’guel Jõn tira-me da cadeira para um gostoso "pê-de-bói" bem mexido. Música. Dança. Sorrisos satisfeitos nas faces enrugadas de tempo, sol e estórias. Alegria nesta tarde de sábado que vai cobrindo o planalto. Vida...

Palmas, pessoal, palmas!


Crónicas de Fajã 3

Acordo com o quarto anormalmente frio, até para um final de dezembro na ilha. São 6h00 da manhã. Abro a janela, o povoado ainda adormece no meio à penumbra e ao silêncio. Depois da festa de ontem, a ressaca de hoje. É domingo. Ergue-se o contorno do monte de Péd Rétim por detrás do coqueiro de Nhá Júlia d’Ana. Volto a enfiar-me na cama, debaixo da pesada colcha que mamãe deixou-me na cabeceira.

Tive dificuldades em dormir esta noite. A ansiedade talvez. O poema que me deixou inquieto, provavelmente. A saudade, com certeza. Tive saudades tuas. Várias vezes durante a noite vieste visitar-me ali no silêncio do quarto. Entravas sem bater, sem pedir licença, deseducadamente. Primeiro chegava-me o teu sorriso meigo. A gargalhada pura depois. Os teus olhos de menina vinham espreitar-me mesmo no escurinho cúmplice que nos envolvia. Tive saudades tuas, bruxinha...


Crónicas de Fajã 4


Por mais que tente, não consigo dormir novamente. O relógio mostra agora 6h23mn. Levanto-me, enfio uma camisa qualquer, pego a máquina fotográfica e saio à cata dos meus tesouros. Subo ao terraço primeiro, em busca de imagens do povoado no amanhecer por detrás da objectiva. Sigo depois para a lavada de Borrónque, bebendo a manhã que desponta lentamente. As canas estão floridas. O vale mostra-se numa roupagem espectacular que me extasia. Topo de M´randa exibe-se num outro ângulo. Ao longe, escuto o barulhinho típico de água a descer por algum “entorrnodor”. No bordo da lavada, dou de caras com um FODÊ escrito a giz branco em letras maiúsculas.
Fico ali algum tempo a rir sozinho perante a cena. Imagino um adolescente qualquer à descoberta do pecado enquanto traça as letras no bordo da lavada. A linha ténue entre a curiosidade, um tintinho assim de rebeldia, e o pecado que lhe atrai. Hormonas, naturalmente. E talvez o primeiro amor. Dos muitos que virão de certeza. Espreita de um lado e de outro a ver se vem vindo alguém. Vai-lhe subindo a adrenalina. Primeiro o F. Enorme e em negrito. Depois o O. Dá mais uma outra espreitada, antes de escrever o D. Respira fundo, há certamente um brilho meio sacana nos seus olhos quando termina o E e coloca o acento circunflexo. Curiosamente, no mesmíssimo local onde, há vinte anos atrás roubava o primeiro beijinho à Gracinda de Ti Djô d’Engrácia, lembro-me agora...

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

De largada para a ilha...

A 21 deste mês “estarei de largada” para a ilha, parafraseando o poeta. Já tenho pronta a mochila, a máquina fotográfica, as sapatilhas de caminhada e o oculos de sol, o presente para a minha princesinha, a folha em branco para escrever o poema e a estória. Aguarda-me o vale, as veredas de Fajã Domingas Bentas em Ribeira da Torre, mais as gargalhadas do Pina e do Jõn Bunita, a festa de fim de ano na escola da comunidade. Aguarda-me o papo gostoso com meu velho Junzim de Polina ali no terraço logo de manhãzinha enquanto a ilha acorda lentamente, o cálice de grogue lá do trapiche de Dona Nininha para celebrar não importa o quê, e o colo da minha mãe – sim senhor, confesso! – onde sem pudor descansarei à noite esta carapinha de sonhos, com os olhos postos no firmamento.

Levo todavia a saudade como um travo amargo. Sabes porquê.


("Sentinela de pedra" - foto de Paulino Dias, descida de Losna)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Excertos...


1

Dá-me ganas de beber o teu sorriso neste preciso instante que te antecede. Gota a gota, lentamente, como se de néctar se tratasse. Tenho sede. E fome. De ti, do teu abraço, do teu cheiro, do teu beijo que enfeitiça. Fazes-me bem. Volto a pensar em ti como um doce pecado.

2

Acordo com o teu cheiro nos meus braços. O dia clareia lentamente no olhar que me ficou na memória como poesia. Levanto-me para correr as cortinas da janela e imagino-me a sussurar no teu ouvido “não tenhas medo”. Não tenhas medo – digo-te baixinho enquanto afasto uma mecha de cabelo da tua face. Lambe-me a pele arranhada de saudade os raios deste sol de dezembro que me entram quarto adentro.

3

Foi delicioso o momento. A curva dos teus lábios, o teu sorriso, o beijo adiado. Ficou o poema e a vontade, a nota de violão e a taça de vinho tinto enquanto passeia a noite pela rua deserta. O desejo de te ver novamente.


(.... to be continued...)

("O Beijo dos Cisnes" - foto de Daniel Oliveira)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Ilhas na ilha

Dizia-me ha dias a Eury que tenho estado um bocado triste por aqui, etc. e tal. Pelo contrario, minha amiga, pelo contrario, digo-te. Ando eh numa excitacao desenfreada, deu-me agora para celebrar tudo e todos, assim feito um bebado ali na tasca da esquina. Celebro a vida, esfusiante e multicolor, celebro os sonhos e os projectos, celebro a memoria e o frescor da ultima caminhada, celebro a voz meiga da minha filha pelo telefone, celebro o olhar doce da mulher no outro lado da rua, celebro o velho poema descoberto entre meus rascunhos de adolescencia, celebro o sorriso terno que me ficou na varanda como um suave perfume...
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Celebro a vida, Eury, celebro a vida...
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("Ilhas na ilha" - foto de Paulino Dias)