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terça-feira, 22 de abril de 2008

150 anos da Praia: crónicas da cidade 2


Sábado de manhã de um Fevereiro quase como os outros aqui na cidade grande. Acordo com uma fresta de sol que me rasga a cortina do quarto e lembro-me de repente do compromisso com o Olavo e o Paulão: ir comprar peixe fresco ali no cais de pesca. Na rádio do carro tocam porton di nôs ilha enquanto rodamos pela marginal. Impõe-se o silêncio, para a poesia do momento. O cheiro é de mar. E ferro velho ao dobrar a curva da Praia Negra. Quando o mundo novo surgi...

Há barafunda sobre o betão do atracadouro. Há cheiro intenso de peixe fresco. Escamas e visceras. Há gritos e rebuliços nesta manhã de Sábado sobre o porto. O colorido das tinas, o quadriculado dos panos de terra ao redor da cintura, a boca escancarada do chicharro como que a exalar ainda o seu último suspiro. Os barcos de pesca balouçam suavemente no dorso do oceano minha memória de bote, bróce & linha...

Mocinhos, nhôs cumpra atum! Ali garoupa!!! O moço dobra seu tronco sobre o atum para a divisão por tres em troca de 200 merés. A faca afiada desliza ágil sobre a carne e num gesto rápido como um ditongo solta-lhe as guelras e as barbatanas. Os pedaços são cortados com uma precisão cirúrgica, de quem conhece o ofício.

Não, não trabalho aqui - afirma-nos o moço. Sou segurança, moro ali em Lém Ferreira. Mas venho aqui todos os Sábados antes de ir ao trabalho pa cata um kusa, às vezes antes das nove já tenho feito até dois contos. Nhôs ka ta atcha ma ´n stá drêtu? Si tudo kusa agora ê PDM nû tem qui ser PDM tambê na cabeça, ou não?? Fogem-me as palavras e entre nós volta a cair um silêncio de espanto. Depois de tantos discursos sobre o assunto, este, sem dúvida, a melhor abordagem de PDM que já ouvira. No cais de pesca num Sábado de manhã.

Fico ali com o olhar perdido entre as mãos grossas do moço, a multidão ao redor, as tinas de peixe fresco e o edifício da Assembléia que se recorta lá longe no outro lado da baía, num cenário quase surrealista...

Nhôs ka ta atcha ma ´n stá drêtu?


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("Praia" - Foto de PD)

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Proxima caminhada / 100o. Post

… e porque este meu cantinho intimista tem vindo sobretudo a louvar as coisas belas da vida, penso ser justo que o 100º. post seja um anúncio da caminhada deste mês, no próximo domingo 20/04.

Trajecto: Ribeira da Barca, Ganxemba, Atchada Ponta. No concelho de Santa Catarina. Já estou até curioso para ver a famosa cascata de que me falaram lá em Ganxemba!

quarta-feira, 16 de abril de 2008

150 anos da Praia: crónicas da cidade 1

Amo esta cidade, caramba! Amo-a, sim senhor. Por detrás do outdoor que nos violenta o olhar, para além da calçada esburacada e das vacas pastando a nossa incredulidade urbana, para além do caçu bodi e dos cortes de luz, há a cidade que eu amo. A cidade do puto a passear de bicicleta na avenida, a cidade da moça da padaria com o belo sorriso que nos enternece entre o cheirinho bom de pão fresco e a chávena de café, a cidade da mulher "di fora" no mercado do Plateau que me vende a batata doce e o coentro entre duas estórias, a cidade de Quebra Canela às 6h da manhã, a cidade que se transcende e nos envolve e nos acarinha e nos abraça. Há a cidade que eu amo, meus caros João Gomes, Abraão, Djinho...

Amo esta cidade, confesso. Sem que me peçam e sem pedir licença. Amo-a assim simplesmente. Amo-a porque sim, porque é preciso. Sobretudo, é preciso amar esta cidade, João. Não só nos discursos mas no gesto. Não na palavra mas na atitude. Não apenas sob os holofotes mas nas esquinas de todas as suas ruas. É preciso, sim senhor, amar esta cidade...

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("Contraste" - foto de PD)
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terça-feira, 15 de abril de 2008

Duas notas a César Schoffield Cardoso (ou a partilha de uma angústia...)

Alô, César!

Recebi com agrado o e-mail que me enviaste com a programação das actividades na Fundação Amilcar Cabral no Plateau (thanks, man!). Fiquei especialmente ansioso para assistir a tertúlia que vai ter lugar hoje (15/04) às 19h30, intitulado "A educação do olhar", com Abraão Vicente, Tchalé Figueira e Mário Lúcio.

Ansioso, meu caro César, porque desde diazá venho carregando comigo uma angústia cruel: como se "educa" para a arte? Quer dizer, "educar" pressupõe um guião, um modelo, um paradigma, um standard. No que diz respeito à educação para a arte, quem tem "legitimidade" para definir este standard? Com que critérios? Como definir a "boa" arte e a arte "ruim"?

Será que não seria melhor falarmos em "estimular" para a arte? Na minha opinião, a percepção artística (e, portanto, a apreciação e avaliação) é individual e intransmissível. Já o "estímulo" para se consumir arte, aí sim, pode ser promovido, divulgado, ensinado. Estarei enganado?

Oxalá hoje à noite saia de lá mais esclarecido e menos angustiado, caramba!

Um abraço, bro...



("Autoretrato", quadro do Abraão Vicente)

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Coisas boas da vida 3

... caramba, um fulano tem que festejar pequenas vitórias da vida também. E partilhar, né?

Acabo de defender a minha tese de mestrado em Gestão Global, com tema sobre cooperativismo em Santo Antão. Nota máxima, eh eh eh...

Daqui de Lisboa, entre o friozinho e a chuva miúda que cai do outro lado da janela do cyber café, mando um especial obrigado a todos os que me ajudaram, em especial às pessoas que "chateei a cabeça" com as entrevistas (em Santo Antão e na Praia), as pessoas que me motivaram (o Antero Veiga e os outros), as pessoas que toleraram minhas noites de clausura em comunhão quase libidinosa com o computador e o bloquinho de notas. E a todos os outros, naturalmente. Valeu, pessoal!

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quarta-feira, 9 de abril de 2008

Duas regrinhas para o Dr. Gilles Filatreaut (TACV)

Exmo. Sr. Dr. Gilles,
Director Geral da TACV.


Escrevo-lhe estas duas regrinhas directamente de tchon de Lisboa onde me encontro, tendo chegado aqui no voo VR606 do passado dia 07/04/08.

O que me levou a tomar a atrevida decisão de lhe endereçar estas linhas, Dr. Gilito, é precisamente o atraso de 3h15mn que tivemos de gramar ali na sala de espera do aeroporto da Praia, ouvindo de tempos em tempos a voz quase robótica do altifalante a sussurrar no nosso ouvido (assim, como uma carícia, caramba!) “informamos aos passageiros com destino a Lisboa que o voo 606 encontra-se atrasado (grande novidade!) por motivos operacionais”.

E aqui, entre duas chávenas de café e uma tentativa de aproveitar para tirar um djonga (posto que tinha levantado às 04h20mn da manhã para poder cumprir o horário que me tinha sido exigido para apresentação no aeroporto), comecei a cogitar algumas sugestões atrevidas para V. Excia., para aliviar o calvário tão recorrente de filhos de parida como eu que têm a desventura de comprarem o “prazer de viajar bem”, nesta companhia que V. Excia. tão doutamente vem dirigindo:

1. Oferecer a cada passageiro, no acto de compra da passagem, um baralho de cartas: assim o pobre coitado terá com que se entreter nas salas de espera durante os atrasos;

2. Investir em relógios despertadores para o pessoal tripulante, garantindo que os mesmos tenham um volume de toque com os decibéis necessários para lhes tirar da gostosa caminha: em caso de dificuldades financeiras para a compra dos despertadores, ofereço-me para organizar uma campanha de doação ou mesmo prestar gratuitamente uma consultoria especializada para determinar uma taxa a cobrar de cada passageiro nas passagens – a “Taxa de Despertador”;

3. Diligenciar junto da ASA para que autorize a Nanda lá de Órgãos Pequeno a montar a ali na sala de espera a sua barraquinha de cachupa guizada, carne de porco assado, linguiça e torresma: que o pãozinho que nos serviram depois de ultrapassadas as duas horas de atraso, estava tão dormido que quase se lhe podia ver as ramelas;

4. Discutir igualmente com a ASA a criação de um espaço privê dentro da sala de espera, para maiores de 18 anos, devendo de imediato providenciar um programa completo de shows eróticos e live sex para ajudar os moços xatiadu si a aliviarem o stress;

5. Organizar cursos intensivos de natação para os passageiros de Frequent Flyer Class: assim, em caso de atraso, e para o pobre coitado que não grama lá muito andar de navio, pode ir sempre a nado nas suas deslocações inter-ilhas; até já estou a ver o meu amigo Djosa em vigorosas braçadas a dobrar a Ponta Moreia rumo a São Vicente, arrastando a sua mala de viagem e a bolsa de plástico com os dois quilos de linguiça que leva de encomenda…

6. Oferecer, em parceria com a Federação Caboverdeana de Artes Marciais, um curso de karaté para os tripulantes: neste voo que originou estas minhas humildes sugestões, Dr. Gilito, a encarregada do pessoal de cabine quase me foi aos tabefes só porque, num acto de protesto e cidadania bem humorada e civilizada, organizei uma sessão de aplausos logo assim que a equipa de tripulantes entrou no salão de espera, 3hs depois da hora constante no meu bilhete de passagem. E dizendo-me, publicamente em alto e bom som, que a continuarmos as palmas, ainda nos deixariam no chão porque elas tinham sido chamadas para substituir uma outra equipa ou coisa assim. Entendi pelas suas palavras o tamanho do favor que a Sra. estava a prestar-nos, e quase que fui às lágrimas, tão emocionado que fiquei com a sua filantrópica decisão, Dr. Gilito! Por isso, karaté para o pessoal, Sr. Director! Não vá um passageiro menos civilizado e menos agradecido estragar-lhes a maquiagem um desses dias perante reacções tão sublimes a uma reclamação justa e educada de um Cliente!

Devo, entretanto, reconhecer o profissionalismo e o respeito aos Clientes demonstrado pelo Comandante Augusto que, já dentro do avião, humildemente pediu-nos desculpas em nome da tripulação e explicou-nos tintim por tintim o que se tinha passado: que desde as 5hs estavam a postos à espera de um elemento da tripulação que estava de folgas. Fiquei tão grato pela explicação que nem ousei imaginar como é que se vem fazendo o planeamento operacional na TACV, Dr. Gilito.

Por último, Sr. Director, devo dizer-lhe que estas regrinhas não foram de modo algum motivadas pela briga de comadres que temos acompanhado pelos jornais, entre a sua direcção e o seu pessoal. Uma vez que as únicas informações que tenho são as que leio nos jornais, não me compete, neste momento, fazer juízos de valor ou tomar partido. Quis apenas, enquanto CLIENTE que assinou um contrato de compra e venda de um serviço com a TACV (pagando caro por isso…), reflectir sobre a forma como nós, pobres coitados e filhos-de-parida-quase-sem-alternativas, temos vindo a “apanhar por tabela” com toda esta confusão. E quando houver alternativas, ahn, Dr. Gilito?


Lisboa, 09 de Abril de 2008


Paulino Dias
Frequent Flyer da TACV, cartão VRA77K2

(com dois dedos cruzados atrás das costas, em figa conhóta para espantar o azar de um outro atraso de 3hs no meu voo de regresso dia 11…)

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domingo, 6 de abril de 2008

Crónica da Serra...

Caminhamos outra vez no passado domingo, dia 30 de Março, Kaká. Caminhamos, para descobrir, para exercitar, para sorrir, para confraternizar, caminhamos para também seguir este nosso destino secular que a ânsia de busca cristalizou na sola dos nossos pés crioulos.


Caminhamos, Kaká. Assim sem fronteiras, sem discursos, sem o tic-tac do relógio sobre nossos crânios, sem contas de luz sem luz, e prestações no banco da esquina, sem trânsito em horas de ponta, sem asfaltos a invadirem a epiderme da cidade e a historia, sem caçu bodi nos nervos urbanos em alerta, sem cartazes impúdicos a violentarem a menina dos nossos olhos, sem a letargia das filas na repartição da outra rua.


Caminhamos por Serra Malagueta, Kaká. Por entre o verde, a vereda, o sorriso, a gargalhada, a vista de tirar o fôlego, o grogue inesperado no final da trilha, a feijoada na Cozinha da Avó, o violão e a poesia. Caminhamos por entre os braços escancarados do Tchico a querer abraçar a ilha de Santiago, o silêncio que nos ficou entre o nevoeiro e o pó, e o silêncio da nossa companheira ali no miradouro a apreciar os vales que se alongam desesperados em direcção ao mar.


Caminhamos, Kaká, porque sim. Porque nos impele o poema, nos excita a brisa fresca pela manhã da ilha, nos enleva o riso e a estória, nos transporta o acorde até o outro lado do mar. Continuaremos a caminhar, Kaká. Continuaremos à tua espera, brother. Com o teu violão, o teu olhar e o teu poema. Continuaremos à tua espera…







(Fotos de Paulino Dias)