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terça-feira, 25 de setembro de 2007

Um post para a minha filha, no primeiro dia de aula


Ontem foi teu primeiro dia de aula, minha princesinha distante. E nem pude estar lá para te segurar as mãozitas que pressenti acanhadas pelo telefone, no be-a-bá deste primeiro dia...
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Eu poderia te dar mil e uma desculpas: o trabalho, a distância, a greve na TACV, o mar revolto no canal, a falta de tempo... Em vez disso, e para me penitenciar, escrevo-te este post que vou imprimir e guardar carinhosamente até que aprendas a lê-lo por ti mesma. Sabes, ainda tenho fresca na memória o meu primeiro dia de aula: o friozinho daquela manhã também de setembro, os olhos bondosos da professora Bibia de Chiquim esperando-nos lá na velha escola coberta de palha, a ansiedade, um quê de descoberta que nos entranha a alma.
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Sobretudo a descoberta. A escola mostra-nos caminhos novos, minha filha. Outros mundos, outros sentidos das coisas, amplia nossos horizontes para lá das montanhas e do mar que nos cercam. A escola - enquanto espaço de educação e fonte de conhecimento - molda-nos também como seres humanos, porque melhora a nossa capacidade de FAZER ESCOLHAS. Vais aprender, minha filha, que tudo na vida acaba por ser resultado das escolhas que fazes, desde as coisinhas simples do dia-a-dia às grandes decisões que te esperam quando cresceres. E para fazeres boas escolhas, é necessário o conhecimento, a formação humana, os valores e os princípios que procuramos - nós, a família, a professora, os vizinhos - cultivar em ti.
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Não há nada mais belo do que a liberdade, minha filha. Sobretudo a liberdade de pensamento e de raciocínio, que a escola nos estimula. Liberdade de ter as tuas próprias opiniões - respeitando sempre sempre sempre as dos outros -, liberdade de fazer os teus próprios juízos de valor, de ter a tua própria percepção das coisas, de fazer as tuas escolhas, liberdade até de apreender e determinar os nossos próprios limites em função da liberdade do outro. Infelizmente, filha, esta é uma liberdade cada vez mais rara e difícil de cultivar, porque todos os dias somos severamente bombardeados com uma quantidade enorme de informações com o único objectivo de influenciar o sentido das nossas escolhas: a cor da roupa que deves usar, o tipo de pão que deves comer de manhã, se desves ou não gostar do Presidente dos EUA... A informação, que devia educar, é usada assim para cercear o bem mais precioso que nós temos, filha: a liberdade.
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A escola, Patrícia, ajuda-nos a conservar e reforçar esta liberdade, através da promoção do nosso desenvolvimento pessoal e intelectual. O conhecimento liberta. E ao mesmo tempo dá-nos a consciência da nossa verdadeira dimensão no universo a que pertencemos, tornando-nos assim mais humildes, mais tolerantes, mais respeitadores das pessoas e das coisas que nos cercam. A sede de conhecimento, logo que se lhe pega o gosto, nunca mais se esgota, vais ver. A boa notícia é que não cansa e dá imenso prazer!
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Meus parabéns pelo teu primeiro dia de aula, filha. E que nunca nunca deixes de cultivar a tal LIBERDADE DE PENSAMENTO a que eu referi atrás.
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Do teu pai, com saudades,


("Patrícia" - foto de Paulino Dias)


terça-feira, 18 de setembro de 2007

Hás-de saber porquê escrevo

Hás-de saber porquê deste post enverdecido. Desta fotografia da minha ilha com cheiro a terra molhada e fiapos de nuvens pendurados nas rochas de Pinhão e Rabo Curto lá ao fundo. A casa de Nhá Jóna de Rosa no lado esquerdo, com o quarto do Jõn Bunita recém construído no terraço, a rocha de Biquim perfilando-se qual sentinela dos teus meus sonhos, o coqueiro de Ti Djô d´Engrácia onde eu e o falecido César costumávamos fanar cocos quando miúdos. Lembras-te? No entanto, nem era julho ainda, e a chuva era tão só uma promessa no calendário das às-águas.
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Hás-de saber porque te escrevo nesta tarde amorfa de setembro...
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("Sentinela dos teus meus sonhos" - Fajã Domingas Bentas, fotografia de Paulino Dias)
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sábado, 15 de setembro de 2007

Rostos da Ilha - 3

Hoje acordei com terríveis saudades tuas, minha princesinha distante. Dói-me a noite mal dormida. E o imenso vazio: no apartamento, no quarto, e em mim.

Quis ao menos por um minuto aconchegar-te com ternura no meu peito e dizer-te o quanto me fazes bem, mesmo sem o saberes...


("Olhar" - foto de Paulino Dias)

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Uma noite de insónia (conto)

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Já não aguento mais a porcaria deste ventilador no meu ouvido vruuuum vruuuum vruuuum. Caramba! Levanto-me de um pulo e arranco a ficha da tomada eléctrica sem sequer me dar ao trabalho de o desligar primeiro. Volto a atirar o corpo para cima da cama como um saco de batatas. Estou exausto. De insónia e de ti. Melhor: da lembrança tua. Sustenho a respiração por dois segundos para sentir a suave carícia do silêncio no quarto. A paz que desce sobre mim é aconchegante como o teu abraço pressentido. Meus lábios esboçam um leve sorriso de encantamento – vejo-te pela primeira vez na esquina do Café Sofia no Plateau, uma segunda vez num domingo qualquer na praia de Quebra Canela, e uma terceira vez quando nos encontramos casualmente ali no Sovaco de Cobra numa Sexta-feira à noite e em jeito atrevido te pedi o número do teu telemóvel. Deste-mo.
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Os quadros se intercalam como num filme em câmera-lenta. Passa um carro na madrugada da rua defronte. Instintivamente olho as horas no despertador da mesinha de cabeceira, são duas e dezassete minutos da madrugada. Penso em ti. O verso percorre a minha pele como um arrepio gostoso, de mãos dadas com o pecado e a curvatura dos teus lábios. O calor volta a invadir-me irremediavelmente a alma e a memória. Condensa-se em gotículas de suor que escorrem em direcção ao lençol amarrotado. Viro-me na cama irrequieto. Busco o conforto e o teu corpo. O teu rosto. Os teus olhos.
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Acendo a luz e envio-te um SMS às duas e trinta e nove minutos da madrugada. Sei que vou acordar-te mas delicio-me sadicamente com a tua imagem a abrir os olhos sobressaltada com o sinal de mensagem recebida, o teu corpo a revirar-se na cama para pegar o telemóvel na mesinha de cabeceira. Quase que sinto tua raiva primeiro – quem ê êss filho-da-mãe dêss hora, chiça! Mas o poema te enternece e por entre a raiva e a réstia de sono esboças um pequeno sorriso que me chega até o quarto no outro lado da cidade.
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Volto a ligar o ventilador made in China - já não aguento o calor, porra! Um mosquito vem aos poucos partilhar comigo o fardo desta insónia. Lembro-me que tenho de me levantar às sete da manhã para ir à vida e quase que entro em pânico. Tens que dormir, moço! Fecho os olhos para forçar o sono mas és tu que me abraças entre o calor e estoutro poema. No meu íntimo fico à espera de uma qualquer resposta tua, seguro o telemóvel por alguns minutos na ansiedade do toque que me anunciará tua palavra ou tua voz. Vruuuum vruuuum vruuuum. Não, não é esta a tua voz no outro lado da porta. Ou será do telefone? Já nem sei mais. Teus lábios se diluem gradativamente por entre a realidade e o sonho. Aos poucos vai-se esfumando na noite o barulho do ventilador. Já não sinto. Sonho talvez e nem sei. Liberto-me. Da insónia, do cansaço, do dia longo. Liberto-me. Para ti. Consigo até ver o meu corpo que abandono em posição fetal sobre o lençol amarrotado. Liberto-me para longe nesta minha eterna ânsia de partir. Sinto-me a adormecer lentamente…
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Triiim! Triiim! Triiim! Acordo sobressaltado com o vibrar do telemóvel em cima da mesinha. É ela, certamente, moço! É ela! O coração aos pulos. Tum tum tum. O teu rosto outra vez. Os teus lábios que pressinto acariciando o outro lado da linha. A ansiedade na ponta dos meus dedos. É ela, caramba! – quase que grito no silêncio do quarto. Nem sequer me dou ao trabalho de confirmar o número no visor. Alôô… faço uma voz ligeiramente sensual para te provocar. Silêncio. Alôôôô….
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“- Alô! Ê di squadra de pulícia de Palmarejo?”
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Era engano.
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quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Desabafo


Carrego comigo esta irremediável ânsia de partir. De me libertar das amarras e voar como um pássaro. Flutuar sobre o tempo, a memória, e o gesto interrompido. Esvaziar-me. Como um moço doido.
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Estive sempre de partida. Estarei sempre de partida. A partida em mim é uma constante como um poema inacabado. Estou em todos os lugares e não sou de lugar nenhum. Vôo, simplesmente. Irremediavelmente.
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("Groguinha - o vôo do anjo", fotos de Paulino Dias)

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Verde!


Telefonou-me o meu irmão Naiss esta manhã, a dar-me conta das primeiras chuvas lá na ilha. E a dizer-me da belíssima fotografia que tinha feito lá em Chochô, um dos recantos mais belos deste país. Lembrei-me então de uma antiga crônica que fizera há algum tempo, e que agora partilho convosco. Era fevereiro e estava de visita à ilha...


VERDE!

Às portas deste fevereiro de Nossenhôr que nos guarda, a ilha enche-nos os olhos e a alma de verde, verde, verde. Muito verde. Verde até a espinha dorsal das gargalhadas a perder de vista e a calma invasão das acácias na planta dos meus pés descalços. Verde claro + verde escuro metamorfoseando-se na retina daqueles olhos, que tentam em vão abarcar a imensidão angustiante das trepadeiras na Cinta de Riba abandonada. Verde e branco, flor e cana bourbon, grogue e fretcha e nervos de trapiche subindo co-re-o-gra-fi-ca-men-te em direção ao verdeazul que nos espreita. Verde no assobio alegre de Junzin d’Pólina no terraço da nossa casa lá em Fajã Diante. Verde-esperança nas enxadas desencalhadas e nos pés de feijão-ervilha coentro e batata inglesa galgando as encostas de Pedregal.

Também verde o sorriso aberto de Djô M’léguéta e sua faca cruzada na cintura numa bainha de pele de cabra, às nove da manhã e já subindo a vereda de Lombinho com um pequeno saco de feijão às costas. No Terreiro, gargalhadas solidariamente verdes do Peléla, Jôn Bunita, Pina, Nã, Roseno, construindo mais uma casa-de-banho oferta da Associação dos Moradores da comunidade, desta vez para a Tunkninha de Nhá Mari’Senhorinha. Verde na fotografia da Cláudia de Mari d’Pritim roubada num instante apenas em que ela se descuida, os belos olhos menina & moça angelicamente espantados no lado oposto da objetiva. E o subtil encanto da minha filha Patrícia que corre para os meus braços no portão da nossa casa, o verde estampado infantilmente nas suas mãozinhas estendidas e na pequena borboleta de plástico que lhe prende os cabelos...

No assento dianteiro do hiace do Catchupa que me leva de volta a Porto Novo, mais verde. Na curva de Nhá Jóna David, nas ladeiras de Cruz, nas contracurvas ao largo da casa de Nhô Menél Jôn e nas chãs embriagadas de verde ali em Estraga, nas bordeiras do Delgadinho onde a vertigem dos precipícios nos espreita nos lados direito e esquerdo das nossas ilhargas, nos ramos de macieiras roçando as janelas do carro ao passarmos por Corda e pelas memórias dos sacos de marmelos da minha infância, com meus primos Gilson e Dinora e nevoeiro e boleia na carroçaria de um camião carregado de pedra-de-calçada, e chuva miudinha encharcando-nos de frio até ao desespero... Verde nos pinheiros tresandando a Europa ali mesmo em Água das Caldeiras e na borda do nosso orgulho crioulo. Verde até nos campos entristecidos de Porto Novo e na voz profunda do Ildo Lobo que irrompe de repente dos pequenos altifalantes do carro para nos devolver o silêncio de tantas secas, na alto cutelo cimbrôn já cá tem... Mas aqui neste cutelo, Ildo, vai ter feijão, batata, cebola, abóbora, cana, banana, ânsias renovadas, gargalhadas de todos os tipos, com bisca & grogue ao cair da tarde, o relembrar de tempos d’outrora, e o canhoto saltitando alegremente de um canto a outro da boca desdentada já. As raízes esticadas hão de encontrar água nos braços ilhéus das enxadas de Juquim de Jóna Chica, Djô M´leguéta, Péd Palinha, Ti M´guêl T´reza....

Se Deus assim quiser – diria certamente Ti Jôn d’Bléca....
(Fotografia tirada daqui)