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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Temos música

Temos música, sim senhor! Temos ilha que nos chega com ternura pelo leitor de CD nesta tarde morna de fevereiro, temos acordes de violão a sul das nossas saudades crioulas mais a voz do violino de Ney de Bia, que varre suavemente as esquinas de Luxemburgo entre o friozinho na fresta da janela e o grogue recém-chegado na mala do emigrante, temos morna e coladeira no dó-ré-mi que passeia na epiderme d´Europa os odores de trapiche da ribeira longínqua e os sons da água cantando entre as pedras e os inhames de Rabo Curto e Xoxô.
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Leva-nos à ilha profunda o CD "Harmonia Tropical", último trabalho do Ney Évora - aliás, Ney de Ti Bia d´Inês lá de Marrador -, que trouxe na minha bagagem aquando da última visita, comprado lá na loja da Shell em Povoação. Leva-nos à lembrança da última tocatina no corredor da sua casa nas suas férias no ano passado, e do último caldo de peixe que nos oferece Ti Bia d´Inês, mais o grogue que passeia de mãos em mãos, de nota em nota, de silêncio em silêncio naquela manhã de domingo. Carrega-nos de mansinho ao pontche de sábado à tarde ali na casa de Nhá Antuninha de Jôn d´Canda, leva-nos à misteriosa tristeza e aos olhos parados de Ntone Robôc por-Déus que me lembro agora, remoendo sabe-se lá o quê, leva-nos à memória do olhar cálido daquela crioula que embarcou para Holanda, num outubro distante sobre o cais do Porto Novo acenando minha angústia de amor & partida ao rasto de espuma que se esvai lentamente com a distância...
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Temos música, senhores! Das ruas gemendo de frio nas costelas da emigração às esquinas de Achada de Santo António com seus bares de cerveja fresca e asinhas de frango grelhado, do nascer do Sol ao sono que demora nas madrugadas da minha mente vagabunda, de norte a sul dos meus poemas feito vales da ilha, temos música!
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Música, maestro!

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

A esfinge da minha ilha

Guarda-nos a ilha a esfinge milenar em pose de guerreira ali na boca de Ribeira das Pombas. Guarda-nos o mar que nos protege a vertigem das ilusões quase perdidas, guarda-nos o sonho e a tentação de verde pelas encostas, protege-nos o violão e a gargalhada de meninos da ilha, dos canhões d´El-Rei que teimam em bordejar o Farol de Boi na Pontinha de Janela a caminho das nossas almas irrequietas de além-mar.
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Nas colinas do tempo sobre o dorso da esfinge ficaram as estórias por contar, as naus de achamento com seus capitães donatários, de ouro, prata e sangue negro na retina dos olhos escancarados de outro mundo, as fomes de 40 nas veredeas do Norte com a proa em direcção às ribeiras do outro lado, os palhabotes de velas enfunadas fugindo das enseadas famintas da ilha para os mares do Sul e suas roças de cacau, com os braços esqueléticos do meu pai mais meu Tio Pedro a tiracolo. E as estórias de tambor acariciando a pele da esfinge, num colá Santo António que ressoa pela tarde morna do vale que se adivinha.

(Foto de Paulino Dias)