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quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Requiém para Péd Palinha

"Péd Palinha ka tem terra lá oi oi, Péd Palinha ka tem terra lá..." - assim gozávamos contigo escondidos atrás das moitas de bananeira de Nhô Móne Qüina, quando fazias a curva à frente do portão da nossa casa. E fugíamos de seguida na tal correria moleque de menino mufino, ante teu olhar que nos crucificava num significativo silêncio, a frase por dizer, o palavrão por concluir, o queixume que ficava suspenso no lento abanar da cabeça que te acompanhava até a esquina da casa de Nhá Joana de Rosa.
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Péd Palinha ka tem terra lá. E ajeitavas a carga de comida-de-bicho que equilibravas no cocoruto da cabeça, a enxada debruçada no ombro esquerdo e a baínha de pele de cabra na cintura, onde guardavas a tua faca de cabo de madeira envelhecida, companheiro inseparavel das horas lentas nas ladeiras de Ribeira da Torre. Bô ká tinha terra lá, Péd Palinha. A tua terra, levou-a a emigração para São Tomé quando moço ainda, onde deixaste a tua juventude e teu quinhão de sangue e estória, levou-a as voltas deste mundo em volta do teu olhar perdido na distância que só tu pressentias. Péd Palinha ka tem terra lá! Mas tinhas a tua mulher Jóna Tosa com o seu jeito peculiar de substituir o "c" e o "q" pelo "t" nas palavras - óli tuztuz teeeeente (e o binde de cuscuz a fumegar na bandeja de manhã de domingo nas veredas de Fajã...). Tinhas os teus meninos-homens e meninas-mulheres que Deus te deu ao longo dos anos, tinhas a tua enxada e o dia-de-trabalho nas terras de Nhô Miguel Costa, Nhô Domingos de Júlia d´Ana, Nhô Jon d´Sençon, meu velho...
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E à boquinha da noite, entre dois grogues temperados com estórias e anedotas ali no botequim do Nóne, dedilhavas gaiatices num cavaquinho imaginário que se adivinhava encostado ao teu peito ilhéu, a ponta dos dedos percorrendo as costelas do teu lado direito como se cordas retesadas alimentando tua e nossa sede de música. Lembro-me que fechavas os olhos enquanto cantavas, Péd. Quem sabe sonhando com o teu pedaço de terra que Deus haveria de te dar um dia!
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Das roças de São Tomé trouxeste a medida exacta do tempo perdido e do fim desta secular ilusão nossa de terra longe. Trouxeste o dorso vergado pelos sacos de cacau e pela tal saudade que corrói a alma e os sonhos, trouxeste os palavrões na língua de Sont´mê que nos ensinavas ali na Bordeira de Fajã, nós, meninos ainda sedentos de outros mundos que teus olhos já tinham acariciado com avidez. E trouxeste o teu destino reencontrado no lombo da enxada noutras terras que não as tuas, porque Péd Palinha ka tinha terra lá...
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Péd Palinha ka tem terra lá - cantávamos em uníssino por detrás das bananeiras de Nhô Móne de Qüina nos anos longínquos da minha infância. E agora que o Pina me diz ao telefone que te foste nesta tarde magoada de Dezembro, digo a mim mesmo que finalmente já tens terra, Péd. A TUA terra, a terra que te perseguiu desde as roças de São Tomé aos precipícios das rochas da ilha, desde o nascer do Sol ao cair da noite com o teu cavaquinho imaginário encostado ao peito. Vou dizer ao Gilson e ao Jôn Bunita e ao Cai de Mari d´Jóna que já não vamos poder cantar nunca mais que Péd Palinha ka tem terra lá, porque Péd Palinha agora tem a sua própria terra. Que a TUA terra te seja leve, Péd!
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Péd Palinha já tem terra lá, oi oi, Péd Palinha já tem terra lá...

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Entre o tempo e a liberdade

Roça-me a brisa suave no calcanhar nesta manhã calma de Janeiro. Suspende-me com ternura do chão crã da ilha e dos ponteiros de relógio que me prendem ao tempo e à angústia de ontem. Flutuo, quase, na imensidão do poema que se aloja de repente entre meu orgulho de macho e a luz verde-azul que me espera do outro lado da ponte. A ponte, sim senhor. A ponte e a liberdade de fluir na leveza da alma. A suprema liberdade de perdoar. Porque só agora percebo, chiça? Há sempre algures uma ponte que nos liga à genese do tal amor ao próximo.

Liberto-me incessantemente às doze badaladas da meia-noite, para acorrentar-me outra vez - sempre sempre sempre! - ao dobrar todas as manhãs o portão da minha casa. Observa-me curioso o miúdo da janela do carro que por mim passa. Mede-me os passos o moço polícia de plantão na esquina. Estupra-me os olhos a manchete de um jornal amarrotado no caixote de lixo com o último atentado nas ruas de Bagdad. O tic tac do relógio sobre a minha secretária. O tempo. As grades carcomidas de tempo na velha prisão do ilhéu de Santa Maria. O tempo que morre com ternura no belo sorriso da moça no café da rua defronte.


O tempo também em minhas mãos, como a tal liberdade verde-azul do outro lado da ponte...




(Foto de Paulino Dias - Ilhéu de Santa Maria)