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domingo, 23 de dezembro de 2007

Cronicas de Fajã Domingas Bentas

Crónicas de Fajã 1

Eram precisamente 11h12mn quando cheguei ao planalto de Fajã, neste sábado 22/12/2007 . Lembro-me de ter olhado o relógio instintivamente (o maldito tempo a cronometrar-me a alma mais uma vez, porra!). Meu pai Junzim d’Polina aguarda-me ali no portão com um terno abraço que já me sabe a Natal na ilha, mamãe também vem chegando da cozinha e escancara os seus braços para que eu neles me aloje como o filho pródigo. O aperto dura largos segundos, enquanto me pergunta pela vida, a Praia como ficou, estás bem disposto graças a Deus, nhá codê!, já estávamos com saudades tuas. Papai ressurge outra vez vindo da sala de jantar com a garrafinha nas mãos e dois copos. Pa secá suor, diz-me... eh eh eh.
Minha princesinha Patrícia está comigo, naturalmente. Fui buscá-la antes de rumar para o vale, vai passar estes dias comigo. Linda. E meiga como sempre. Mas vai logo perguntando-me pelos presentes, depois do abraço apertado e do longo beijo que me sabe a poema nesta manhã de dezembro. Fala-me entusiasmada da escola, da última prova em que tirou mais um 20, do número seis que estiveram a aprender nas últimas aulas, das brincadeiras de roda no intervalo...
A vida é bela, parece dizer-me o Benigni aqui no planalto de Fajã Domingas Bentas, entre rumores de verde, o silêncio da ilha e o cheirinho bom de cachupa guizada que me chega lá da cozinha neste preciso instante em que vos escrevo.



Crónicas de Fajã 2

A tarde foi de festa no planalto. O tradicional encontro dos “menos jovens” da comunidade, no Natal organizado pela malta das associações Amafajã, João Paulo II e Pedras Vivas. Estavam quase todos lá: Nhá Júlia d’Antone, Nóna e Nhô Marta, Nhá Treza, Dinha Arcângela, Tia Tuda, Nhô Jõn d’Guigui, Nhô Lela e sua esposa Nhá Engrácia, lá de Ribeirinha Curta, Nhá Guida de Marcelino que veio de Varzinha com Nhá Lina de Vicente, Ti Pipi mais Nhá Carlota, Nhô Jon Ntunin e Nhô Zéc de Marrador, meus velhos Junzim d’Pólina e Silva, e tantos outros...
Primeiro foi a missa rezada pelo Padre Ima, que veio de Povoação propositadamente. O pátio da escola feito capela ao ar livre, a fé a sair das soturnas igrejas para galgar os vales, montes e cutelos até à casa das gentes da ilha. A fé estampada no rosto de Nhá Nizinha, o olhar fixo no altar improvisado de onde Padre Ima fala à plateia do amor de Cristo. Nhô Jôn M’guel e Nhá Titina recebem do Padre um presente pelos 60 anos de casados (esta uma próxima crónica...). Nhá Joana Carlota recebe igualmente um presente, por ser a mais idosa da comunidade, ostentando uns rijos quase cem anos.
Depois a música, os comes e bebes, a dança. Papai abraça a minha mãe numa morna enternecida. Os olhos estão fechados, deve estar a recordar os velhos tempos de conquista, nos bailes das salas de terra batida alumiados a candeeiros a petróleo. Depois é Maria Berrnalda quem lhe arranca os pés do chão num coladera arrebatado que lhe deixa exausto mas feliz da vida. Nhá Treza de M’guel Jõn tira-me da cadeira para um gostoso "pê-de-bói" bem mexido. Música. Dança. Sorrisos satisfeitos nas faces enrugadas de tempo, sol e estórias. Alegria nesta tarde de sábado que vai cobrindo o planalto. Vida...

Palmas, pessoal, palmas!


Crónicas de Fajã 3

Acordo com o quarto anormalmente frio, até para um final de dezembro na ilha. São 6h00 da manhã. Abro a janela, o povoado ainda adormece no meio à penumbra e ao silêncio. Depois da festa de ontem, a ressaca de hoje. É domingo. Ergue-se o contorno do monte de Péd Rétim por detrás do coqueiro de Nhá Júlia d’Ana. Volto a enfiar-me na cama, debaixo da pesada colcha que mamãe deixou-me na cabeceira.

Tive dificuldades em dormir esta noite. A ansiedade talvez. O poema que me deixou inquieto, provavelmente. A saudade, com certeza. Tive saudades tuas. Várias vezes durante a noite vieste visitar-me ali no silêncio do quarto. Entravas sem bater, sem pedir licença, deseducadamente. Primeiro chegava-me o teu sorriso meigo. A gargalhada pura depois. Os teus olhos de menina vinham espreitar-me mesmo no escurinho cúmplice que nos envolvia. Tive saudades tuas, bruxinha...


Crónicas de Fajã 4


Por mais que tente, não consigo dormir novamente. O relógio mostra agora 6h23mn. Levanto-me, enfio uma camisa qualquer, pego a máquina fotográfica e saio à cata dos meus tesouros. Subo ao terraço primeiro, em busca de imagens do povoado no amanhecer por detrás da objectiva. Sigo depois para a lavada de Borrónque, bebendo a manhã que desponta lentamente. As canas estão floridas. O vale mostra-se numa roupagem espectacular que me extasia. Topo de M´randa exibe-se num outro ângulo. Ao longe, escuto o barulhinho típico de água a descer por algum “entorrnodor”. No bordo da lavada, dou de caras com um FODÊ escrito a giz branco em letras maiúsculas.
Fico ali algum tempo a rir sozinho perante a cena. Imagino um adolescente qualquer à descoberta do pecado enquanto traça as letras no bordo da lavada. A linha ténue entre a curiosidade, um tintinho assim de rebeldia, e o pecado que lhe atrai. Hormonas, naturalmente. E talvez o primeiro amor. Dos muitos que virão de certeza. Espreita de um lado e de outro a ver se vem vindo alguém. Vai-lhe subindo a adrenalina. Primeiro o F. Enorme e em negrito. Depois o O. Dá mais uma outra espreitada, antes de escrever o D. Respira fundo, há certamente um brilho meio sacana nos seus olhos quando termina o E e coloca o acento circunflexo. Curiosamente, no mesmíssimo local onde, há vinte anos atrás roubava o primeiro beijinho à Gracinda de Ti Djô d’Engrácia, lembro-me agora...

1 comentário:

Anónimo disse...

obrigado por lembrares da nossa gente do nosso vale e por fazer dela o espelho da vida .nossa gente !!!