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A noite fazia-se puta nos braços erectos das montanhas ao redor. Aqui e ali, grilos entoavam ao mundo sua fome de existir, o vento morno de Agosto segredava nos cabos de telefone ao lado da casa minha ambição de poesia. Sobre a mesa da escrivaninha o computador ali tã à espera da estória que não me vem, caramba!, a folha em branco, o tédio, e o tempo suspenso na frase por concluir.
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Desperta-me de repente o zunido do telemóvel no bolso da minha calça jeans. Milú de Nhô Pidrim d’Clemente. Milú, colega de infância nas ladeiras da ilha, Milú, bela como um verso inesperado, Milú, no beijo roubado ali à sombra do pé de fruta-pão de Nhô Léla d’Póla, o coração kutrum kutrum que nem panela de pápa ta rompê férva, e o adeus depois na curva da estrada a caminho d’Holanda, para se casar com o moço bonito de sorriso fácil e pescoço debruado de cordões de ouro.
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Milú, m’nina, há quanto tempo não tenho notícias, tuas, que é feito de ti, Milú!, como tens passado lá na strangêr? Nem percebi que o número no visor indicava São Vicente... A voz soou-me estranhamente calma ao telefone. Uma tonalidade metálica do outro lado da linha parecia rasgar o silêncio que se fazia sentir entre uma palavra e outra, entre uma sílaba e o clímax que se pressentia em mais uma história dessas ilhas. A história, o clímax, a voz metálica, uma mulher ferida de morte. Traída no mais íntimo das suas convicções, da sua inocência drasticamente perdida.
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Só queria conversar, diz-me. Precisava. Antes do gesto planeado até aos mais íntimos detalhes, milimetricamente revisto nos últimos três anos e quatro meses de tchõn de Sóncent. É, moço, Soncent. Nunca pûs os pés na Holanda. O sonho de embarcar ficou-me ali mesmo na esquina da Rua 9, no guetô cheirando a sexo, perfume barato e pontche máfe, com musiquinhas da Roberta Miranda e pósters da Cindy Crawford nas paredes, a cama de casal onde o desgraçado levou-me os três vinténs e a minha inocência. Regressou à Holanda uma semana depois para enviar-me os papéis e a aliança, as lágrimas de saudade que lhe vi rosto abaixo na despedida – juro, moço, juro que eu vi! – calcaram em mim a certeza de que breve breve desembarcaria na tchôn d’Holanda. Qual tchôn d’Holanda, moço, tchôn de gaita!, os dias foram passando, as semanas e os meses foram desfilando ante minha angústia crescente, o telefone mudo ao lado da mesinha, mas sobretudo o silêncio. Os dias foram passando, moço, e nem f’maça de papel pá Holanda. Aqui estou eu agora, a vender cavala e melõn pelas ruas de Soncent e a morar num quartinho alugado por três conto e quinhentos em Ribeirinha. Com vergonha de regressar à ilha, ao meu mundo, à minha gente, ao meu sossego...
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Agora soube que ele chega amanhã à tarde, moço. Com a mulher e os dois filhos. Diz-me, tem um lugar para mim depois de amanhã lá na ilha, para adormecer no teu ombro esquerdo? Desligou.
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No dia seguinte, no jornal da noite ecoando do meu radinho a pilhas, a voz do jornalista pareceu-me algo divertida no meio da notícia: um emigrante recém-chegado à terra, para assistir ao festival da Baía das Gatas junto com a família, tinha entrado todo esbaforido no banco de urgência do Hospital Baptista de Sousa a berrar desesperado bocês tchmá Dotôr, bocês tchmá Dotôr pá bem costuráme êsse côsa, óh Deus!, bocês tchamá’l pa bem coláme êl! – e mostrava o seu pirilau embrulhado numa bolsa de plástico, cortado rente aos testículos com uma faca de escamar peixe...
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