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sábado, 9 de outubro de 2010

Crónica de uma visita ao campo de concentração de Tarrafal

Se calhar nem deveria chamar "crónica" a este amontoado de palavras. Ou que ao menos lhe acrescentasse "desaforada", como o meu vizinho margoso. Por esta gana que tenho neste momento de desbragar umas quantas porras, confesso...

Pede-me a minha prima e o marido dela angolano que lhes mostre o campo de concentração de Tarrafal. Conhecem gente que ali esteve e não saem de Santiago sem lhe ver as grades, o campo. Ala para Tarrafal via Pedra-Badejo, numa Quinta-feira solarenga de verde a bombordo pelas encostas e azul do mar a estibordo, para lhe beber um pouco a história. Mas em vez disso, esta crónica que deveria ser desaforada...

Logo à entrada um silêncio - que quereria normal num museu - e um vazio que, esta sim, faz-me um friozinho na barriga. Não tem ninguém?!, penso cá com os meus inseparáveis botões. Mas logo aparece uma senhora da sala à direita com um ar de enfado onde se pode ler "chiça!, lá me vêm uns paspalhos estragar-me a sesta...". Tem dois miúdos ranhosos agarrados às pernas. Silêncio. "Bom dia, senhora". Silêncio. Quanto é a entrada? "Cém merrés". Silêncio. Entrego o dinheiro e faço questão de receber os bilhetes. Para recordação, digo à minha prima. Por desaforo, digo aos tais botões meus.

No corredor principal ainda, revejo "Tarrafal, o pântano da morte", de Cândido Oliveira, que lera aos quinze anos com lágrimas nos olhos. O vento sopra suavemente por entre as casernas, o poço e as grades da história. Levo comigo a minha máquina, naturalmente. Por isso escuto apenas o vento desta vez: abstenho-me da contemplação, até para me proteger do desencanto. Em vez disso, enquadramento, quantidade de luz, posição do Sol, velocidade de disparo. Em vez disso grades retorcidas, nesgas de céu para lá do portão entreaberto, a pequena capela ao fundo na imensidão do corredor embasaltado. Quereria rostos, como é evidente. Corpos decrépitos a caminharem trôpegos pelos espaços agora vazios do campo. Olhares que adivinho mortiços na angústia de quem já não espera. Olhares do Algarve ao Alentejo para aqui transpostos pela bestialidade dos homens. Olhares de Luanda, olhares de Bissau, olhares de São Tomé, olhares de Lourenço Marques. Olhares dessas ilhas de que nos fala Pedro Martins e os outros.

Quereria também história, com certeza. Alguém para me contar - e à minha prima e o marido - as coisas que estas paredes assistiram, impunes, sem ao menos poderem dizer ao mundo. Alguém para nos contar estórias do campo, pois. Em multilingue para que ressoasse aos quatro cantos do universo. (Deito um olhar angustiado à senhora agora esparramada numa velha cadeira numa sombra à entrada. Com os miúdos à perna ainda...).

Desviámos à direita e depois de atravessar um portão entreaberto "descobrimos" duas alas com fotos de antigos prisioneiros angolanos e guineenses. O silêncio ali clama à contemplação. Pede-nos humildade e respeito. Reflexão. Por enquanto, desbrago-me a fazer fotografias tão só. Luz e contra-luz. Nesgas de Sol que entram pelas grades e iluminam o outro lado da parede. As fotos são enormes, imponentes. Prometo a mim mesmo regressar com calma - sem a máquina! - para lhes consumir os rostos. Destrinçar os olhares. Desbravar as rugas como quem entra em território desconhecido. Embrenhar-me pelas suas angústias, se calhar até escrever um poema qualquer em sua memória. Hei-de voltar, sim senhor.

Ao redor dos edifícios e nos corredores, a vivacidade das ervas brada-me abandono. Triste, muito triste. E eu que quereria museu... Ah!, mas agora compreendo a razão das cabras que vi outro dia na Fortaleza de Cidade Velha: não são cabras, pois. São funcionárias de limpeza. Devem ter até contrato assinado, cartão do INPS, direito a férias e subsídio de Natal. Pena que não falem o meu crioulo para me contarem as tais estórias. E muito menos inglês ou francês, naturalmente. Transfiram, portanto, parte das cabr...digo, das funcionárias de limpeza, ao campo de concentração de Tarrafal. Imediatamente! Se houver resistências e ameaças de greve, que venham então as vacas das ruas de Palmarejo! Mas agora com este verde todo que cobre a ilha eram capazes até de ficarem snobs e recusar o convite, essas atrevidas. E eu que quereria museu...

À saída, cerca-nos um grupo de cinco ou seis miúdos. Entre eles, os dois que inda agora colavam-se às pernas da senhora dos bilhetes. Nhôs dan um kusa. Digo-lhes que não, e em jeito de filósofo maluco digo-lhes que mininu ka ta pidi dinhêro, nhôs devia sta era na skola! Olham-me assim mesmo - como um filósofo maluco - apenas por uma fracção de segundo antes de zarparem à minha prima e marido. Digo a estes que não lhes dêm dinheiro e os miúdos agora crucificam-me com o olhar. Sou eu, agora, o carrasco, a crueldade em pessoa, o abusador de crianças. Na porta, a senhora continua esparramada na cadeira, agora observando a cena com o queixo pousado numa das mãos. Silêncio. Coisa tão banal, afinal... Depois falamos de thugs, abandono escolar, criminalidade juvenil, São Martinho a abarrotar pelas costuras, minha esposa angustiada pelos dramas que lhe vão desfilando pela sala. Quase que mando à bardamerda a senhora no portão com as mãos no queixo, mas lembro-me a tempo dos miúdos ao redor e dos tais valores meus. Seria uma contradição, pois. Eu que iria assim exigir valores aos miúdos. E um museu ali ao lado, dizia...

Assim vamos caminhando, nesta Quinta-feira solarenga de verdeazul. (Des)construindo história. (Des)construindo respeito e memórias. (Des)construindo valores. (Des)construindo o pouco que nos resta já de registos do nosso percurso colectivo. E eu que - porra! (não resisti) - queria apenas um museu ali no campo de concentração de Tarrafal...



(Campo de concentração de Tarrafal - Fotos de PD)

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