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quarta-feira, 30 de maio de 2007

AS ÚLTIMAS 24hs NA VIDA DE UM SUICIDA (Conto - II)

Como tinha prometido...

2ª Parte
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Tem aquela outra em que uma voz esganiçada berra-nos ao ouvido durante 4 minutos e 23 segundos que se o seu “amor” não voltar para ela, vai morrer.... Coitada! Óh menina, se amor matasse assim, dois terços da humanidade batia as botas antes dos vinte e cinco anos. Afinal tem sempre aquela história de fulano que gosta de beltrana que gosta de sicrano, e aí ficava uma confusão dos diabos se todos resolvessem “morrer de amor”, não acha? Ninguém morre de amor, que fique bem claro. Não por essas bandas. Aliás, quase que fui o primeiro a conseguir esta suprema proeza, quando andava à procura de uma razão plausível para me matar. Afinal, “porquê?” é a primeira pergunta que nos assalta quando alguém se mata. José bebeu lixívia? Porquê, comadre, problema de dívidas? Maria pulou do terraço? Porquê será, hein? Vai ver que o Djondjôn pegou-a naquela sua sem-vergonhice com o Dr. Sousa... Povinho curioso este nosso, caramba, que um cidadão já não pode dar cabo do próprio canastro sem que venham com especulações! Decidi que meu suicídio seria por causa de amor. Assim, sublime e poético que nem um daqueles romances do ultra-romantismo português que o Professor Hermenegildo Costa lia para nós ali no Liceu. Escreveria uma carta de despedida que seria meu derradeiro poema, debruada de declarações de amor impossível, olhares de rubis, sorrisos de lua cheia, beijos que adivinhava com sabor a mel de abelha e chocolate, mãos de deusa que sonhava percorrendo a minha pele nas noites insones em que por ti eu suspirava, óh minha amada! E então pûs-me sôfregamente à procura da mulher por quem me mataria.
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A primeira escolhida foi a Maitê Proença, a actriz bela como um anjo de Abril que aparece na novela das oito, toda dengosa e com uns olhos, meu Deus, de fazer um cristão perder o juízo mesmo. Que é isso, rapaz, matar-se por estrela de televisão? Que coisa sem criatividade, hein! Desisti da Maitê. Melhor que seja uma das redondezas mesmo, para causar mais impacto. Pensei na Carlinha, a filha codê do Sr. Jesualdo lá da outra rua. Linda, um andar provocante sacudindo dois pares de mamas que mais parecem talhadas pelo Criador, o sorriso sempre com um quê de sacana e trocista que espalha pelas ruas da cidade. E como gosta de provocar-me, esta filha de Belzebu!, depois que lhe deixei bem claro que tenho ganas de lhe subir na mangueira. Só se fôr noutra encarnação, fofinho. Puta! Melhor deixar prá lá porque vaidosa como ela é, é bem capaz de colocar o meu suicídio no seu currículum, e aí é que ninguém mais pode com ela. Até já estou a ver a coisa: “muito prazer, moço, meu nome é Carlinha, éééé, aquela mesma por quem o Sr. Francisco deu um tiro nos miolos...”. Abaixo a opcção Carlinha. Já sei! A Dra. Gertrudes, a cota boazuda directora do meu departamento, porquê não pensei nela antes? Não que seja aquele pedaço de mau caminho, mas sempre tive um fraquinho pela sua inteligência e firmeza como conduz as coisas lá na empresa, parece uma máquina de tomar decisões, racionalíssima e tal, que não gosta lá muita dessas frescuras de namorar, beijinhos, mãos agarradas... Hum, também não sei, ainda era capaz de ficar irritada com o meu gesto sublime, chamando-o de irracional, idiota, e sei lá que mais, desvalorizando-o... Não, não a velha da Gertrudes, que meu gesto tem que ficar em grande para a posteridade. Ah!, tem a Mariazinha, a moça do video-clube que mais parece vivendo no mundo da Lua. Sempre sonhadora, com uns olhos belos, mas diria até que triste, vive suspirando à espera do seu príncipe encantado como daqueles que se vê nos filmes a fazer aquelas chorosas declarações de amor que a levam invariavelmente às lágrimas. Mas romântica como ela é, a Mariazinha, se souber que me matei por falta de coragem de declarar o suposto secreto amor que nutria por ela, é bem capaz de ela também cortar os pulsos logo a seguir, para poder encontrar-se comigo no além. E lá em cima eu quero é paz, sossego, tranquilidade e umazinha de vez enquanto, nem pensar em ficar por lá a arrastar mala para cima e para baixo. Reprovada a Mariazinha.
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Caramba, como está difícil morrer por amor hoje em dia! Deixa pra lá, daqui a pouco encho-me de coragem e conto o verdadeiro motivo que vai levar-me a apertar o gatilho contra a têmpora do lado direito. É, claro que tem um motivo, estavam a pensar o quê? Mas essa parte fica para mais tarde que, como já disse, agora não quero falar do meu anunciado suicídio. Cada coisa a seu tempo. Não é que eu esteja com medo ou a vacilar, vê-se logo. A decisão está tomada e acabou. Não tem mais essa de revisão, reanálise, realinhamento de estratégia, mudança de paradigma e o caraças. Vou enfiar uma bala no crânio e pronto! Só que vai ser dentro de algumas horas, conforme acordado com este mesmo crânio que vou lixar. É que a minha mente anda nesses dias tão irrequieta e vagabunda que lhe resolvi conceder-lhe este último desejo, de sair à farra com as minhas memórias a tiracolo. E assim também terei um tempinho ainda para arrumar os meus poemas na mesinha de cabeceira, preparar as últimas 24hs nos mínimos detalhes, escrever estas merdices todas só por gozação...
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A pior coisa que pode acontecer é não planear as coisas direito. Fazer o espalhafato todo de que vai se matar e na hora H, nem fumo nem mandóde. É isso que acaba por tirar a dignidade do gesto sublime de se matar, banalizando-o e jogando-o para o campo da covardia, do fingimento, da chantagenzinha barata. Agora suicida-se por dá cá aquela palha, caramba! Qualquer problemazinha de meia tigela, toca a pendurar o pescoço na árvore do quintal ou a atirar o canastro para o vazio do precipício, como se este fosse o último culpado das nossas fraquezas. Não está a conseguir pagar a prestação da casa? Fortim! Acusaram-lhe injustamente de surripiar uns paus da empresa que surripia milhares de paus do cidadão? Fortim! Não conseguiu o visto para a Holanda? Fortim! Porra!, a demanda está tão forte que daqui a pouco vai-se estar a vender frasquinhos de suicídio nas bandejas de drops, gorila e sucrinha, pelas ruas da cidade. Já imaginaram? Grande negócio seria este, o do suicídio. Até já estou a imaginar a cena: óli suicíííííídio! Suicídio frêêêsc! Suicídio bonito e “balato”! Ou o empresário mais sofisticado, com aquele anúncio todo profissional estampado nos principais jornais da praça: “MATE-SE, Lda., empresa especializada na promoção do suicídio, ajuda-o a resolver todos os seus problemas, através de uma variada gama de produtos e serviços, incluindo laços de enforcar pré-prontos, comprimidos ultra-concentrados e sobre-doseados, aconselhamento profissional sobre as melhores formas de se matar, serviço de transporte em viaturas com ar condicionado até à borda de qualquer precipício. Pagamento adiantado (claro!)”.
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Estão a dar cabo do charme de se matar, caramba! Matar-se é seguramente um gesto íntimo, meus senhores. Devia até ser regulamentado, protegido por uma estrutura jurídico-legal para salvaguardar os direitos do candidato a suicida, entre os quais o direito à intimidade e às suas memórias, na derradeira hora que antecede o gesto. Pena que daqui a pouco vou meter aquela bala que está ali, no meu crânio, senão lançaria uma Campanha de Protecção aos Direitos do Suicida. Já imaginaram? Eu, Frank de Nhá Mari Constança, enfiado no meu fato cinzento escuro com aquela gravata que ganhei da Lena no meu 40º aniversário, à testa de uma manifestação bem concorrida a caminho do Palácio da Assembléia (ou, quem sabe até, a sede da ONU em Nova York...), com cartazes, gritos de ordem e tudo, o Dr. Floriano Varela, conhecido defensor dos direitos humanos, na linha da frente a entoar uma canção especialmente adaptada para a marcha, “tud criston, tud cimbron, tem direito, a sê quota de bala...”, e atrás, milhares de potenciais suicidas a berrar “nô crê nôs direito!, nô crê nôs direito!”. Havia de ser uma graça ver também a cara dos políticos enternecidos e solidários com a nossa luta, acotovelando-se para assumirem lugares no palco à frente do microfone. Seriam expulsos, com certeza. O suicídio é um assunto muito sério para ser entregue nas mãos dos políticos, como diria o outro.
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Humm!, cheirinho bom que sobe lá da cozinha. Cachupa guizada que mamãe está a preparar para o café da manhã, de certeza. Que horas são, hein? Caramba!, 07h12mn, e eu que nem preguei olho ainda, a noite inteira a escrever estas porcarias! Mas que importa lá o sono, se daqui a algumas horas vou poder “dormir” até o dia do Juízo Final? Aliás essa seria até um tanto ou quanto surrealista: o fulano ali a bocejar depois da novela das nove, levanta-se, dá um beijo na mãe, diz que tem que ir já pra cama porque amanhã vai se matar e precisa estar suficientemente descansado, caminha até o banheiro arrastando os chinelos, escova os dentes, faz o pupú à hora de costume, regressa ao quarto já com o corpo meio mole de sono, afasta o cobertor para um lado, ajeita-se no colchão 100% cotton, apaga a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira, dorme em dois minutos, acorda dia seguinte logo cedo, senta-se na bordeira da cama, dá aquela espreguiçada matutina, pega no revólver na segunda gaveta, encosta-o ao crânio e ... pum! Não, porra!, casta de suicídio seria esse? Ah!, como adoro este cheiro de cachupa guizada! Até consigo ouvri o fritchir da velha frigideira que mamãe comprou diazá lá na loja do Djandjan.
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Acho que vou mais é descer lá embaixo e dar uma espreitadela na mesa da cozinha...
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** FIM **

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