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domingo, 27 de maio de 2007

AS ÚLTIMAS 24hs NA VIDA DE UM SUICIDA (Conto)

Calma, pessoal, não se assustem (como uma pessoa a quem mostrei o conto, e, ao ler o primeiro parágrafo virou-se para mim com uns olhos mais grilidos que aqueles de Pedro de Nhô Germano quando viu gongon, e perguntou-me preocupado "óh Paulino está tudo bem contigo, não tens nenhum problema, pois não?, não leve muito a sério as coisas deste mundo, moço!" Só então percebi a confusão em que me tinha metido! Está bem, o título é meio macabro, mas leiam até o fim. Não é tão "dark" assim, vão ver...
Prometo colocar o conto inteiro, em partes, para não vos maçar, ok?.
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1ª Parte
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A idéia de enfiar uma bala na minha própria cabeça veio-me aos miolos ontem à noite, precisamente às 21h35mn. Até olhei para o relógio, paranóico que sou com a questão do tempo, chiça!
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É isso mesmo, disse para comigo, porque não pensei nisso antes? Um tiro na têmpora do lado direito e pronto. Rápido, simples e indolor. E há até um quê de heróico no gesto sublime de apertar o gatilho, regozijo-me. Sim senhor, porque as outras formas de se dar cabo da própria pele escondem um desejo covarde de salvação no derradeiro minuto: a corda que pode arrebentar-se na hora H sob o peso do corpo suspenso, o precipício não assim suficientemente profundo, o filho-da-puta do médico que passava em frente ao portão no momento exacto da overdose de comprimidos... Um tiro nos miolos é mais certeiro e seguro, não há chances de errar, nem com livro de São Cipriano. E livro-me assim do meu passado.
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Meu passado. Que me persegue junto com a sombra, e até nas entrelinhas desta minha carta de despedida... Meu passado... Óh Deus meu! Deus?! Chiça!, e eu que sempre vangloriei-me do meu ateísmo convicto, agora chamando esta figura para a dança. Será medo, caramba? Já alguém disse, não sei quem exactamente, que na hora di bai todo o mundo torna-se crente dos sete costados. É, companheiro, medo do desconhecido, não é? O homem – até o mais empedernido dos machos – tem um medo terrível do desconhecido. E o medo da morte é um deles. Quer dizer, do pós-morte, que a morte já todo mundo pelo menos acima dos cinco anos já sabe o que é: podem chamá­-lo de esticar o pernil, bater a caçuleta, ir prestar contas ao Criador, subir ao céu, embarcar num hiace de quatro alças, viagem sem regresso... O pós-morte é que é um problema, nunca ninguém conseguiu dar-me uma explicação convincente. Nem o meu velho chapa, o Juca, com quem tinha um acordo, de quem partir primeiro arrumar um jeito de vir esclarecer ao outro como é que é o lado “de lá”.
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Amigo sacana aquele Juca. Bateu as botas faz um tempão – cirrose hepática - mas até esta data nunca veio saciar esta minha curiosidade! Pôxa, só queria que ele me aparecesse uma vez apenas, não importa se em forma de voz oculta, se de sombra cavernosa ou se face angelical com auréola de anjo. Não diziam que a alma penada de Pedro de Nhô Germano aparecera ao Felisberto ali na curva da estrada de Longueira? Então? Pena que este, em vez de fazer umas perguntinhas de gente sensata para esclarecer esta dúvida existencial, tenha desatado estrada arriba numa correria alucinada com os olhos mais grilidos que lua cheia, gritando ó pove de Varzinha vocês me acudam que Pedro de Nhô Germano está a querer levar-me com ele, socooooorro! Covarde de não sei que diga, chiça! A mim é que não me aparece uma alma do além disposto a bater um papo, trocar umas idéias, tipo assim coisa de filósofo maluco. Até já estou a preparar o roteiro da conversa: e aí meu velho, como vão esses ossos? Ops!, melhor não usar esta gíria, o fulano pode até levar a mal pensando que estou a gozar, literalmente. E aí, meu velho, esta saúde como vai? Também não, caramba!, morto tem lá ou deixa de ter saúde! Fala, brother, tudo na paz? Hummm, também meio arriscado para um início de conversa com um morto. Vai que este tal de inferno não seja afinal aqui na terra mas “lá em cima”, e o ex-vivente não tenha sido exactamente um menino de coro, certamente não vai estar nada em paz... Porra, dilema cruel este, o início de conversa com um finado! Deixa prá lá, quando acontecer este meu tão esperado encontro, saio logo metralhando a alma penada com as centenas de perguntas que trago atravessado na garganta desde que o Juca se foi: onde é que você está?, como é que é lá?, o que você sente?, consegue ver aqui tudo direitinho?, lá tem mulher?, e tem essa idiotice de cada-uma-com-o-seu-cada-qual?, quêeeeee, tudo liberadoooo?, que faço eu aqui então ainda??? Lá tem música de violão e doce de papaia com queijo de Santo Antão? Baboseira esta, hein... Não é que eu seja uma torre de coragem, diga-se logo. Mas a curiosidade certamente falaria mais alto, tenho a certeza. A curiosidade e também a saudade, vale dizer. Perguntaria pelo Juca, pela minha Tia Perpétua que se foi quando eu era menino ainda, pelo doido Djubi que deambulava sua loucura pelas ruas da Vila até que sumiu de repente e nunca mais se encontrou nem o corpo...
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Bolas, vou mudar de assunto que ficar a falar da morte à hora da morte é meio deprimente. De qualquer forma já já vou poder esclarecer todas as minhas dúvidas por mim mesmo. Como carta de despedida, era suposto eu estar aqui a esparramar amor aos quatro ventos, tipo “mamãe perdoa-me este gesto mas não tive outra saída, já não aguentava o peso da angústia dentro de mim, eu te amo muito, mamãe. E, claro está, ao meu pai também, o melhor homem que eu conheci...”. Nããão, estou sem saco para essa lenga-lenga. Se nunca os disse “eu vos amo meu pai e minha mãe”, para quê dizê-lo agora? Aliás, crioulo não gosta mesmo de dizer essas coisas para as pessoas que realmente ama. Melhor: amámos à nossa maneira, sem estas pieguices novelescas que nos enfiam goela abaixo de manhã à noite, sem este choramingar de paixão para cima e para baixo, as sobrancelhas levemente arqueadas sobre os olhos desmaiando-se numa ternura de nos fazer ir às lágrimas, a voz ligeiramente chorosa para dar a tal divina musicalidade que idealizamos no amor ao próximo. Este é o amor-teatrinho-água-com-açúcar.
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Pior é que a coisa acaba por cercar-nos de todos os lados, acaba influenciando tanto as pessoas ao nosso redor – especialmente as mulheres! – que é um Deus nos acuda se não as dizemos pelo menos dez vezes ao dia “coraçãããão, eu te amo...”; “docinhoooooo, I love you béstente, sabias?”. Claro que sabia, idiota, é a nona vez que repetes isso apenas hoje! Ou então pensas que ela é surda... “Vem cá minha princesa, vem para o teu fifiu, vem, amorzinho, estou tão apaixonado por você...”. Dá ganas de vomitar, caramba! Isso sem falar nas musiquinhas de merda que nos entopem os buracos dos ouvidos até à exaustão. “Tô fazendo amor / com outra pessoa / mas meu coração...”. Certo. Certíssimo. O fulano está a comer aquela morenaça de tirar o fôlego, um metro e setenta de gente bem distribuída, louvar-a-Deus, e fica a pensar onde está o seu coração! Ah qual é, vai enganar outro, companheiro. Que nesta hora, a última coisa em que se pensa é o coração. Aliás, muitas das vezes, nem se pensa coisa alguma. Não dizem que quando a cabeça embaixo sobe, a de cima desce? Fode-se e pronto. Ops!, eu aqui com a minha língua desgarrada... Melhor dizer “fazer amor”. É mais chique e não corro o risco de deixar encabulados os meus herdeiros que terão que ouvir este lero todo no Cartório Notarial da freguesia, na divisão post-mortum dos meus parcos bens (nossa, até está saindo latim, hein!). E porque então não uso a função delete para apagar daqui este palavrão, ahn? Talvez que lá no fundo queira mesmo que fiquem encabulados, os parasitas, nem que seja um tintinho assim. “Fazer a-mor”. Não é lindo esta frase, pessoal? Vá lá, fechem os olhos e sintam-lhe o gosto: “f-a-z-e-r a-m-o-r”. Hummm, sabe a borbulhas de fino champanhe francês que nos acaricia a língua. “Fazer amor”... “Amoooor, vamos fazer amor, amorzinho...?” (chiiiiiiiça!). “Ai, hoje não dá, amooor, minha máquina está com tinta vermelha... que pena”. Filha-da-mãe!, pensa o fulano secretamente para não dar bandeira... Agora lembro-me que o Zé também detestava esta música. Quando começava a tocar na rádio, saía logo aos berros, que se o rapaz estava a reclamar, que fosse fazer amor com a puta-que-o-pariu!!! Doido, este Zé, fazia-nos rir às gargalhadas o seu ódio visceral a esta música...
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(Continua no próximo post)

1 comentário:

Kamia disse...

É frustrante, não é? Essa mania que algumas pessoas têm de entender tudo o que escrevemos na primeira pessoa como um relato pessoal.

Aguardo a continuação do conto.