Ergue-se a parede solitária às portas da baía, como um guardião em prumo que nos observa desde gerações. Espreita certamente a cidade grande - os carros que passam apressados na avenida defronte, o imponente edifício da Assembléia Nacional erecto no planalto da Achada feito um soldado de outros tempos, a vendedeira de peixe fresco que justo agora berra nas esquinas do bairro Brasil a tal fome de trezentos mérés o quilo, a estátua do Diogo no planalto do Plateau como que à espera das suas naus de velas enfunadas a sotavento, o moço de tronco nu mais o seu balde de lavar carros com o pano amarelo à trela, três rapazinhos que esfregam seus pés de ilha na areia negra da praia defronte.
Que mistérios guardará esta parede solitária que se ergue assim na geografia do ilhéu? Talvez o grito derradeiro do vigia nos destroços do navio naufragado, talvez a angústia do olhar pressentido por entre as grades da velha prisão, talvez o poema inesperado que o moço lançara às ondas do mar numa noite qualquer de lua cheia a descer suavemente sob a cidade.
Há, sim senhor, qualquer coisa entre o silêncio e o tempo, nas pedras desta parede solitária que nos vigia com ternura do Ilhéu de Santa Maria!
(Foto de Paulino Dias - parede solitária no ilhéu de Santa Maria)
1 comentário:
"O ilhéu de Santa Maria foi no século XIX, um porto carvoeiro e o seu passado reporta-se aos ciclos de fome em Cabo Verde, servindo para albergar os indigentes e famintos tendo sido mais tarde transformado numa leprosaria que só viria a ser desactivada na década de 40." O que no presente leva a introspecções ternurentas foi um lugar de comércio, fome e leprosos. A única constante na história/estória do local deve ser a vista privilegiada. Ainda bem que o tempo tudo apaga, deixando de pé somente o mistério e a poesia, observada á medida dos olhos de cada qual.
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