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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Candêr de pitrôl

Lendo a indignação do Abrão (e aproveitando para lhe "roubar" a fotografia do candêr de pitrol abaixo), veio-me a memória uma pequena cronica que escrevi no ano passado, em plena agonia dos cortes generalizados de luz eléctrica...

CANDÊR DE PITROL


A Electra tem nos deixado a todos no meio de uma escuridão dos diab... nãããã, não vou falar da Electra. Que sobre isso muita tinta já correu, muito já se disse, não há muita novidade por aí a não ser as 101 Dicas Para Viver Sem Luz que me vejo forçado a pôr em prática dia sim dia sim (por exemplo, estou a pensar seriamente em adoptar um look rasta ou black power: morro de medo de ir a uma barbearia nesses dias e ...puf!, a maldita electricidade escanelar-se bem a meio do corte de cabelo!).

Mas neste último mês não pára de me assediar os miolos aquela imagem do candêr de pitrôl que mamãe colocava todos os dias à noite no quarto que nos servia de sala de jantar. Quase que o vejo – alucinado que fico, à procura de luz luz luz!, quando chego em casa à noite – assim no seu formato cônico de lata reciclada, a “cabeça” de tampa de cerveja feito coroa de rainha, encimada com uma pequena forma cilíndrica por onde passa a torcida. E a chamazita – Deus, a chama! – que nos alumiava as horas, o mundo ao redor, as histórias de Ti M´guêl de Treza ali à porta da casa antes que invadissem o povoado os gongons e as bruxas de meia-noite a caminho de Esponjeiro.

O candêr de pitrôl fazia parte definitivamente do nosso mundo e do nosso imaginário. Antes dos cabos elétricos rasgarem os vales da ilha até os recôndidos de Fajã a Rabo Curto, não havia casa em que não se encontrasse esta imprescindível ferramenta, em todas as lojas era obrigatório ter lá o bidon de pitrôl que Nhô Chico d´Helena ia reabastecer de tempos em tempos com aquele enorme camião de combustível da Shell, e todo menino de mandado que se preze teria que saber comprar meio quarto de pitrôl ali na loja de Jóna Lima. Detestava comprar pitrôl, pessoal. Assim como levantar a torcida do candeeiro para aumentar a chama. O cheiro que nos ficava entranhado debaixo das unhas – imagina então se justo naquela hora nos resolve aparecer a tchutchinha, bolas!, quase que o beijinho saía com gosto de... pitrôl!

A utilidade do candêr de pitrôl não se resumia apenas à iluminação, claro. Devido aos supostos poderes curativos do pitrôl, o candeeiro era assim também uma espécie de mini-farmácia ou armazém de remédio: alguém estava com dor de barriga? Traga o candeeiro! Umbigo inflamado? Candeeeeeeiro! Comichão nos testículos? Toma lá torcida de pitrôl!! Mordida de cempê? Pitrôl era remédio santo...

Tínhamos também lá em casa o candeeiro de vidro, comprado lá na loja de Nhô Zeferino em Povoação. Mas este, credo!, só para ocasiões especiais tipo visita em casa, ou quando escrevia cartas pa Nununa em Holanda. Colocado ostensivamente no centro da mesa da sala sobre uma rendinha, o seu clarão alaranjado impunha-se rei e senhor sobre os rostos ansiosos e os rostos de saudade, enquanto mamãe ditava-me as mantenhas e abenças para o filho na terra-longe. O pior azar que nos podia acontecer era quebrar o vidro do candeeiro. Então o cinto de três pernas comia solto, como numa desgraçada tarde em que acidentalmente dei um encontrão na mesa, fazendo derrubar candeeiro, vidro, renda, a fotografia a preto e branco da minha prima Paulina na moldura dourada... meu pai ficou uma fera!

Mas não havia candeeiro que nos deixasse com os olhos tão grilidos de espanto como o petromax de Ti Jôn d´Bléca. Para nós aquela era uma novidade de outro mundo, era ver a potente luz a espalhar-se desde o corredor da sua casa até os pilares de cana ao redor e o trecho do caminho que passa em frente ao portão, alumiando-nos as mã-gatchádas, os pés e as vozes de menino nas noites estreladas de Fajã, os pés as vozes e a LUZ na tal comunhão sobre as horas noturnas em movimento.

Não sei porque me vêm tudo isso aos miolos justo agora, caramba!


("Lamparina" - foto tirada daqui)

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