Agora que o "empreendedorismo" parece ter entrado na moda nessas ilhas, não é demais partilhar aqui convosco algumas insónias, em jeito de provocação para o debate que se impõe.
1. Está a tornar-se já senso comum a ideia de que o crescimento económico e o desenvolvimento dependem muito do fomento do empreendedorismo e, especialmente no que a Cabo Verde diz respeito, do empreendedorismo feminino, considerando o peso que o desemprego tem neste segmento.
2. No entanto, é necessário clarificarmos e separarmos os conceitos de empreendedorismo: por necessidade e por vocação. O empreendedorismo por necessidade, como o próprio nome indica, é "forçado" pelas circunstâncias e pela necessidade de se encontrar vias para garantir o sustento. Apesar do poder deste tipo de empreendedorismo em estimular o nascimento de pequenos negócios - e, consequentemente, aumentar o auto-emprego -, tendencialmente o seu crescimento é limitado (ou estagna-se) assim que esta necessidade de "sobrevivência" é atingida.
3. Dito de outra forma, o empreendedorismo por necessidade na maior parte das vezes não carrega na sua essência a "ambição de crescer" que caracteriza o empreendedorismo por vocação. Por isso, o seu potencial enquanto motor de crescimento económico sustentável a longo prazo é limitado - o que poderia explicar parcialmente, por exemplo, o facto de não obstante a África Subsaariana ser uma região com uma longa tradição de empreendedorismo - por necessidade -, o número de multinacionais surgidas e/ou com sede na África é muito reduzido...
4. Por outro lado, os empreendedores por vocação têm uma necessidade intrínseca de crescer, de inovar, de desafiar o
status quo, de experimentar coisas novas - muito além da mera necessidade de sobrevivência. O empreendedor por vocação é naturalmente irrequieto, procura identificar e explorar oportunidades de negócio e de expansão, independentemente da simples satisfação de necessidades básicas de sobrevivência. Este tipo de empreendedorismo, por isso, tem um efeito positivo muito maior no ritmo e natureza do crescimento económico de um país ou uma região. A promoção, portanto, de uma cultura empreendedora (por vocação) no seio de um determinado grupo tem um resultado potencial maior na medida em que estimula as pessoas a terem ambição. A crescerem. A se expandirem, a não se limitarem à busca de meras soluções para assegurar os "três por dia".
4. Em resumo, poderíamos dizer que o empreendedorismo por necessidade REDUZ A POBREZA, enquanto o empreendedorismo por vocação PROMOVE A RIQUEZA.
5. No que diz respeito a Cabo Verde, muito se tem falado no empreendedorismo e esporadicamente se tem debatido se somos ou não um povo empreendedor. A minha opinião é o seguinte: se estamos a falar de empreendedorismo por necessidade, somos sim um povo empreendedor. A própria natureza agreste e as difíceis condições de vida empurraram-nos historicamente para a busca de soluções empreendedoras imediatas para a cachupa na panela. Mas se estamos a falar de empreendedorismo por vocação, aqui não estou assim tão convencido, se temos de facto uma cultura empreendedora muito forte. As evidências são muitas: número de empresas, estrutura da balança comercial, número de empresas internacionalizadas, peso da informalidade na economia (temos 24.000 Unidades de Produção Informal contra cerca de 8200 empresas formais - quem se mantém na informalidade é porque não tem ambição de crescer, típico do empreendedorismo por necessidade...), etc.
5. Para um ritmo de crescimento maior, puxado por um sector privado inovador, ambicioso, competitivo, o que é preciso é sobretudo estimular e promover o empreendedorismo POR VOCAÇÃO, e isso passa necessariamente por fomentar uma cultura de inovação, de experimentação, de ousadia, de ambição, de assumpção de riscos (calculados), de transferência do "centro de controlo" para dentro de cada um de nós enquanto indivíduos. Este, obviamente, não é algo que se consegue com duas cantigas, nem de noite para o dia, e nem se espera que gere votos nas próximas eleições. É um trabalho de gerações, que exige coragem, visão de longo prazo e do conjunto, liderança, coerência e consistência de políticas e estratégias. Passa por começar a trabalhar o indivíduo desde a formatação da sua personalidade (família & comunidade), passando pelos mecanismos de apreensão de conhecimento (sistema de ensino, acesso a informação) até à adequação dos ambientes em que aplica este conhecimento (empresas, instituições, infra-estruturas...).
6. Isso não quer dizer, naturalmente, que se deve ignorar ou abandonar o reforço do empreendedorismo por necessidade. Nada disso. Este tem um papel importante no aumento do auto-emprego, no crescimento do nível de renda das famílias, na melhoria das condições de vida de uma certa faixa da população. O que defendo, sim, é que as políticas para sustentar o empreendedorismo por necessidade devem ser, pela sua especificidade, distintas das exigidas para o fomento de um empreendedorismo por vocação. Os objectivos pretendidos em cada uma dessas dimensões devem ser claramente definidos, e os mecanismos de intervenção (e até de integração ou de migração de um tipo de empreendedorismo para o outro tipo) terão que ser desenhados tendo como base esta perspectiva.
7. Dito, isto, vamos rever o nosso discurso sobre o empreendedorismo em Cabo Verde, pessoal? De que tipo de empreendedorismo nós estamos a falar? Serão os instrumentos que vimos utilizando os mais adequados? Quais as fraquezas subjacentes, considerando a distinção feita acima? Qual o melhor caminho que devemos seguir?